Anaximandro Amorim*
Ela estava ali. Redondinha, redondinha. "Vendem-se flores". Partícula apassivadora. Verbo e substantivo concordando. Não resisti e tirei uma foto, sob os olhares espantados da dona da casa que ficava sobre a loja. Já era bem de noite, eu sei. Das três, uma: ladrão, maluco ou professor de português. Não roubei nada e tampouco me formei em Letras. Qual a única opção que sobrava? Compartilhar aquela maravilha gramatical nas redes sociais, é claro, sob protestos de uma, que pensou que eu "falaria da beleza e gentileza de se vender flores", e com o vaticínio de outro, que disse "raro mesmo é ganhar flores". De fato, para se amar, muitas vezes, a única língua necessária é aquela que está dentro da boca.
Se não é necessário ter a gramática na ponta da língua para se gostar de alguém, também não é preciso tê-la decorado para se escrever bem. Conheço muita gente bamba no português que produz textos maravilhosos, mas que não sabe o porquê de aquela palavra ter um acento tal, ou ser escrita de tal modo. Pudera: todo mundo tem, sim, uma gramática dentro de si. Claro, alguns, em dois ou três tomos. Outros, com três ou quatro páginas. É um show de "menas", "a gente fomos", "vamos se encontrar" e outras pérolas que fariam o mais purista dos gramáticos tremer como vara verde! Mas, afinal: "nós vai pegar os menino", apesar de péssima, não surtiu seu efeito?
Surtiu. A frase tem sujeito e predicado, locução verbal e objeto direto. O que significa, mais uma vez: Sim. Todo mundo tem uma gramática dentro de si. Esse mesmo falante jamais diria: "Menino pegar vai nós os". Calma, leitor. Nem bem ao mar, nem bem à terra. Não chancelo tal frase, mas, por outro lado, que não me acusem de "preconceito linguístico": afinal, quem nunca soltou um "é rúim?", quem nunca disse "rúbrica", quem nunca comeu um pluralzinho que "seje" (ou que "esteje"), que atire a primeira pedra. Língua é um fenômeno complexo que se amolda de acordo com o meio social. Às vezes, flexionar o plural, em determinada comunidade, pode causar estranhamento. Da mesma forma que usar "cujo" em uma mesa de bar. Conheço uma pessoa que fez isso e espantou os amigos. Essa pessoa foi a mesma que tirou a foto da placa mencionada no primeiro parágrafo desta crônica.
Língua é também sinônimo de poder. Basta observar os advogados e os médicos, por exemplo. É como se eles falassem outra língua, propositadamente diferente. Da mesma forma, a língua dos traficantes de drogas, dos presidiários. Língua esconde, esclarece, inclui e exclui. Não há apenas uma língua portuguesa, mas várias. Tantas, que, em algumas, é mais aceito usar "nós vai" e, em outras, "cujo". Porém, é preciso haver um registro standard, senão a coisa viraria o caos e a língua se perderia. Por isso a "norma culta", decantada na gramática normativa. Sim, leitor, até a língua tem leis. E, como tudo na vida humana, ninguém passa um dia sem transgredir as regras. Afinal, se falássemos completamente de acordo com a gramática, causaríamos tanto espanto quanto as mesóclises do Temer. E olha que elas estão corretinhas, corretinhas!
Não, leitor, não estou aqui dizendo para não estudarmos mais a gramática. Ao revés! Quem é meu aluno sabe o quanto eu dou importância a isso. Só não acho que ela seja um fim em si mesma, mas, certamente, uma ferramenta para se ir mais além. É necessário ensinar a essa pessoa do "nós vai pegar os menino" que usar corretamente o verbo e não se esquecer do plural fará com que ela tenha acesso a um universo mais amplo, a um emprego melhor, a ser vista com outros olhos. "Em tempos de ódio, amar é uma transgressão", foi o que respondi ao vaticínio acima. De fato, quando digo "Eu te amo", não estou preocupado se usei a segunda ou terceira pessoa do singular. Mas pensaria duas vezes antes de marcar um encontro com que me dissesse "Vamos se conhecer?". "Vendem-se flores" não fará com que as flores dessa loja fiquem mais bonitas que de outras, mas, certamente, já destacou esse negócio dos demais. Tomara que dê tão certo quanto o português deles.
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