Ricardo Coelho dos Santos*
A história que relato aqui me foi contada pelo Irmão Marista Wagner de Mello Ribeiro.
Irmão Wagner foi um talentoso maestro, autor de obras sobre história da música, e leitor assíduo dos livros de bolso de J. Mallorqui, principalmente “O Coyote”, um sucesso de vendas dos anos sessenta. Foi meu professor de História, e dos bons. Uma qualidade de um professor de História do seu calibre é a de contar detalhes pitorescos dos principais personagens dessa trama que fizeram o mundo como ele o é agora. E um dos seus contos mais marcantes reproduzo aqui, de memória. Perdoem-me a falta de precisão em relação ao seu relato, mas estou puxando da memória algo que me foi passado há quase cinquenta anos.
Todos estavam se preparando para a festa de aniversário do Imperador D. Pedro I. A festa seria em Petrópolis e seria no seu gosto cultural, com uma apresentação musical do Padre José Maurício.
Vamos aqui abrir parênteses sobre esse religioso. Padre José Maurício Nunes Garcia era um afrodescendente, o que, na época escravagista, deporia contra seu talento, mas que soube vencer mostrando o quão bem executava um cravo, a ponto de receber uma comenda de Dom João VI na sua primeira apresentação. Desconhecido do grande público brasileiro, foi o compositor mais prolífico do nosso país, autor de composições eruditas e sacras e que, cuja obra, infelizmente, só encontramos em material importado. Ele é mais conhecido no exterior que no Brasil!
Voltemos ao conto!
Para celebrar a festa, o bom compositor preparou uma peça sinfônica com muitos instrumentos e a participação de um coral infantil. Os músicos se hospedaram no Palácio Imperial da época para a execução pela manhã. O Imperador estava ansioso em escutar o trabalho do seu compositor favorito.
Entretanto, muitos nobres da corte queriam se mostrar diante o Imperador na festa. Era importante estar perto dele, para que Vossa Majestade soubesse que cada um dos nobres ali existia e que apreciava a sua presença e gosto pelas artes, prestando, assim, sua homenagem ao príncipe.
Todos, então, munidos de suas importâncias e proximidades com a Família Imperial, se convidaram para o evento. Se eram próximos ao Imperador, se eram amigos dele e se eram seus braços direitos, tinham de cumprir os sagrados deveres de estarem ao seu lado nas alegrias e a postos em caso de suas necessidades. Principalmente numa festa regada a quitutes saborosos e vinhos portugueses de qualidade.
A casa ficou tão cheia que não tinha mais lugares para serem ocupados. Todos os quartos já tinham pessoas preparadas para o grande evento na manhã do dia seguinte. Isso era um absurdo, foi o que vários nobres disseram. Como eu, um Visconde importante, um Duque respeitado, um Marquês influente, não encontro hospedagem na Casa Imperial. Quem, afinal, está ocupando tantos quartos?
Havia quartos ocupados por Viscondes, Duques, Marqueses e Barões convidados por Vossa Majestade. Em outros, estavam os fidalgos que tinham chegado antes. Mas, absurdo dos absurdos, um escândalo, havia dependências com crianças do coral, violinistas, trompetistas, bateristas e outros componentes da orquestra, nas vagas dos importantes nobres que lá se lançaram na árdua tarefa de servir ao Imperador, com suas esposas e seus herdeiros, na esperança desses também cumprirem a importante função de se encontrarem com outros herdeiros, se possível, com mais posses!
Os servidores do Palácio, sem ter o que fazer senão cumprirem as ordens de tão elevadas pessoas, desocuparam os estábulos para lá abrigarem os músicos e o coral. Apesar de ser o mês de outubro, fazia frio e eles ficaram à mercê dos ventos e do sereno da noite.
Padre José Maurício tinha sido chamado por D. Pedro I para relatar-lhe como iam os preparativos para sua audição. Eis que ele revelou: “Vossa Majestade, sinto em dizer que a peça, embora tenha sido composta com meu melhor esmero e dedicação, temo em informar que não será desenvolvida com igual qualidade pelos músicos e pelo coral!”.
O Imperador não gostou da notícia. Ele, um poeta e compositor perfeccionista, inclusive aluno do Padre, não poderia aceitar que a qualidade de alguma coisa que ele tanto desejava e que cujo trabalho na sua formação tinha sido o melhor possível, pois coisa menor ele não esperava daquele grande maestro, quis saber o porquê que se previa sua decepção. E o Padre respondeu: “É que alguns nobres e seus familiares ocuparam os aposentos onde estavam abrigados os músicos e seu coral. Vossa Majestade recomendara que eles ficassem bem descansados para executarem a obra, mas isso será impossível. Eles estão mal acomodados e temo, principalmente, pela saúde das gargantas das crianças do coral.”.
Irado, o Imperador chamou a todos os nobres que voluntariamente se apresentaram para os festejos, acompanhados de seus familiares. Perguntou a cada um como eles conseguiram se tornar de Barão a Duque. Todas as respostas dadas podem ser resumidas em uma só frase:
— Por obra e graça de Vossa Majestade!
— Então, era a isso que nós queríamos chegar. Nós, com um decreto que assinamos, fizemos de você Marquês, de você um Conde e eis que você se tornou um Visconde — falou se dirigindo a cada um. — Com uma assinatura nossa, cada um se tornou nobre. Esse é o nosso poder! Fazemos e desfazemos a nobreza do nosso país, pois eis que, assinando, nomeamos, a cada um dos senhores, nobres! A nós também cabe o poder, sem questionamentos, de exonerar cada nobre brasileiro dos tantos que existem. Podemos fazer, de qualquer cidadão à nossa escolha, um Conde, por exemplo… Como podemos tirar dele seu título, quando nós bem o quisermos! Portanto, todos disseram bem: “Por obra e graça nossas”!
Todos gostaram de escutar isso. Mas ele continuou:
— Mas, o que não conseguimos fazer, por obra e graça nossas, por decreto nenhum nem nosso, muito menos de nossos ministros ou por determinação de nenhum dos nossos juízes, é transformar um cidadão comum num cantor ou num instrumentista. Não podemos, através de um papel assinado, fazer com que um cidadão se torne um músico. Eis que eles precisam de estudos e somente após treino, dedicação e esforço, um maestro, que passou antes pela mesma situação, pode liberá-lo a tocar um fagote ou um violoncelo para o público. Especialmente, para nós. Também, não podemos, por decreto, transformar a voz de qualquer criança numa voz de coral. Muito menos, transformar uma garganta adoecida pelo sereno da noite numa voz maviosa que encantaria os mais exigentes ouvidos. O poder do Imperador não é absoluto. O Imperador não tem poder sobre tudo e sobre todos.
Com o silêncio pesado na corte, D. Pedro I prosseguiu:
— Portanto, deveremos assim agir com os poderes que temos.
E foi assim que os nobres, com suas extravagantes e caras roupagens adquiridas da Europa, suas belas joias, calçados e perucas, acompanhados pelas indignadas, mas mudas, esposas que queriam se comparar com as rivais da corte, e ainda com seus filhos que deveriam mostrar aos filhos dos outros nobres os valores de suas importâncias para assegurarem lugares eternos junto à Família Imperial, foram dormir juntos nos estábulos, entre as palhas que alimentavam os cavalos, e os músicos e cantores voltaram confortavelmente aos seus quartos.
Certo dia, numa determinada organização industrial, numa palestra destinada ao corpo gerencial, relatei esse conto.
Nunca mais fui chamado a palestrar naquele lugar!
*Ricardo Coelho dos Santos
Fontes: UOL Educação, Wikipédia,
http://www.josemauricio.com.br.