Por: Anaximandro Amorim*
Tem que matar esse pessoal tudo, mesmo!, disse a voz ao meu lado, enquanto a matéria exibia mais uma faceta da miséria humana: a tragédia num shopping de Munique, dias depois do que ocorrera em Nice. O maluco em questão era alemão de origem iraniana, ou seja, já detinha uma espécie de "pendor genético" para o crime. Como se cristãos já não houvessem matado. Como se ateus, judeus, budistas idem. Como se humanos já não estranhassem humanos há milênios.
Quando estudante, eu aprendi que o filósofo Thomas Hobbes já dizia ser o homem essencialmente mau. Quando criança, ganhei uma arma de brinquedo dos meus pais. Idêntica a uma pistola de verdade. Não havia politicamente correto nos anos 1980. Mas havia mais zelo com a educação dos filhos. O brinquedo foi confiscado porque, segundo me disseram, eu só falava em matar. Não virei um psicopata, nem uma pessoa violenta. Isso seria impossível com esse meu coração de manteiga. Mas certamente a pistola foi um simulacro de uma natureza humana que tendia a se aflorar.
Quem nunca pensou em matar alguém, aliás, que atire a primeira pedra. E atire para acertar. Até o mais pacato dos cidadãos já pensou nisso. Imagine só, leitor, se a arma do parágrafo anterior fosse verdadeira? Pode-se pensar, aliás, na sensação de poder que isso dá. Creio que deva ser uma espécie de "brincar de Deus" maldito. Eu tenho o poder de vida e de morte nas minhas mãos. Por um momento, eu posso. Eu forço. Eu mato. Deve ser por isso que a "lei do cão" corrompe tanta gente. Deve ser por isso que, quando se tira uma arma, o bandido tampa a cara. Ele volta a virar mortal.
Não há uma religião, um país que mata mais. A gente mata porque mata. Os motivos, no entanto, podem diferir de região para região, de cultura para cultura. Nos países islâmicos, ao que parece, é a religião. Aqui, sempre acreditei ser o consumo. Mata-se para se ter um carro, um tênis, uma pedra de crack. Se bem que eu vi na televisão, dia desses, uma "igreja" utilizando a Bíblia como pretexto para se matar homossexuais. Geralmente usa-se o Levítico, mesmo livro que condena tocar em uma mulher menstruada, ou comer carne de porco. Esquece-se desse detalhe, no entanto. Afinal, matar bicha, pode. E, de preferência, bota no mesmo pacote um preto, um pobre ou uma puta.
O que mais me impressiona é que o mesmo Jesus cultuado por esses "cristãos" reduziu o decálogo em uma só lei: "amai-vos uns aos outros". E, como qualquer pessoa que viveu pelo amor, morreu pelo ódio. E assim com ele Pedro, Paulo, Gandhi, Luther King. Já se matou muito em nome de Deus, o mesmo que diz "não matarás". E mesmo quem não tem Deus, mata por um sistema, uma causa. Ou mesmo quando não há causa nenhuma. Já ouvi de gente matar por um cigarro. Mata-se mesmo havendo lei. Aliás, o primeiro artigo da parte especial do Código Penal brasileiro trata do homicídio. E, mesmo assim, é olho por olho, dente por dente.
Sim, leitor, a lei do cão é mais fácil, a lei do cão é mais prática. Mate o iraniano porque ele é muçulmano, sem nem imaginar que ele é, antes de tudo, um cidadão europeu, certamente habitante de uma periferia e com a chancela do preconceito de nascença. Mas disso, ninguém quer saber. Bandido bom é bandido morto, desde que não seja meu pai, meu irmão ou meu filho. Ah, antes de mais nada, não estou fazendo apologia a vagabundo. Também me revolto, como qualquer pessoa e, certamente, se eu tivesse uma pedra na mão, atiraria. Uma arma, então... Mas eu estou do lado daqueles que ainda acreditam no amor, por mais utópico que pareça. Pena que gente como eu vive levando pedrada. Quando não leva bala daqueles que acham que tem que matar todo mundo, mesmo.
* Advogado e Escritor.
Publicado também em www.anaximandroamorim.com.br