Não havia engarrafamento no nosso caminho. Afinal, nós estávamos voltando para Orlando. Vimos um capotamento. Um carro resolveu ir em velocidade excessiva, derrapara no chão molhado e capotara. Um acidente causado pela imprudência que estamos acostumados a ver.
Chegamos ao supermercado. Cheio de gente. Não havia carrinhos à disposição, mas encontramos um no pátio do estacionamento. Havia ainda comida, mas não tinha pão nem água: os alimentos mais básicos. Minha filha conseguiu achar algumas garrafas de água mineral, das pequenas, escondidas atrás de refrigerantes numa geladeira de bebidas. Ela pegou o suficiente para nós e um rapaz, vendo-a, arrematou todo o resto. No lugar de pão, compramos tortillas e nos conformamos.
Fomos ao hotel e procuramos saber sobre as condições da emergência. Primeiramente, queríamos saber sobre a nossa melhor rota de fuga, mas, naquela hora que chegamos, em torno das 19:00 h, todos estavam proibidos de fugir. Era mandatório ficarmos no hotel. Entretanto, o café da manhã estava garantido, e também estaríamos seguros, pois o hotel alocara os hóspedes na parte mais segura, longe da força principal do vento.
Tudo estava fechado e o tráfego era o mínimo possível. Um vento quente com algumas gotas esparsas se fazia presentes e uma loja de bebidas estava aberta. É muito comum nos Estados Unidos realizarem nas casas o “hurricane party”, pois, com um dia decretado de folga, eles passam o tempo bebendo. A ideia nos pareceu atraente e fomos comprar algumas bebidas: margaritas e “fire ball”: um coquetel de uísque com canela. Compramos também um “Long Island Tea”, uma mistura de chá com uma porção de bebidas destiladas. Bebida perigosa, pois você só sente o gosto do chá, mas o porre vem de todo o jeito.
No hotel, nos alojamos e comemos o que pudemos. O vento era violento, mas ainda não se comparava a alguns ventos que já enfrentamos em Vila Velha (ES). Dei uma saída para ver outros ângulos da tempestade e aproveitei para trocar ideias com a gerência. Deparamos com uma família faminta perguntando quando o restaurante do hotel se abriria. O hotel não tinha restaurante. Só servia café da manhã com produtos comprados prontos. Deu pena, pois a menina aparentava estar faminta, mas não pude fazer nada. Estávamos presos no hotel e só quem conhece as emergências nos Estados Unidos sabia como agir naquele momento. Eles não.
A noite foi passada sob apreensão. Os vizinhos do apartamento ao lado, todos jovens, bebiam sentados no corredor externo assistindo a tempestade. Apenas ventos fortes, nada arrasadores. A tempestade tinha caído para nível 3 nas costas da Flórida, deixando somente uma vítima. Os prejuízos maiores foram costeiros: estradas que margeiam a costa tinham sido levadas em parte e as marinas tiveram vários barcos destroçados. Nada muito além disso.
No dia seguinte, ficamos presos no hotel. Para um turista que pagou antecipadamente a ida a um parque da Disney, tal situação é economicamente triste. Fazer o quê! Tomamos café da manhã e pegamos alguns ingredientes para levar ao apartamento e nos guarnecer. Essa prática, comum nos Estados Unidos, foi, mais tarde, proibida no hotel. Porém, já estávamos abastecidos.
Ficamos em casa dormindo. Queria usar o computador, mas as tomadas americanas são incompatíveis com os plugues brasileiros. Fiquei lendo “Uma Breve História do Cristianismo” de Geoffrey Blainey e mandando mensagens para a Defesa Civil Escoteira do Espírito Santo pelo celular. Tirei algumas fotos, mas nenhuma significativa. Na internet, as fotos saíram melhores, tiradas nos pontos de impacto.
A partir da tarde, o vento tinha caído bastante e soubemos que alguns restaurantes estavam abertos. Tentamos ir a supermercados. O que tínhamos ido de véspera estava fechado. Procuramos outro supermercado e entramos pouco antes desse fechar. Tinha água, mas não tinha pão: esse estava racionado. Procuramos restaurantes e muitos estavam abertos. Entramos numa pizzaria a rodízio e pudemos nos satisfazer de um dia e meio de racionamento, comendo pouco pão e o pouco de água que tínhamos.
Hoje, o céu nasceu azul. Tudo voltara ao normal. Falei com a gerência, brincando: “Sobrevivemos!”. O americano não entende muito o humor do brasileiro, de modo que não sei se riram mesmo ou se foram simpáticos. Mas, nas ruas, nem parece que um furacão tinha passado por lá. A piscina do hotel, que, com a ventania, tinha formado ondas, estava antes imunda de folhas e abrira limpa nessa manhã. Os filhos dos hóspedes se esbaldaram.
Fiquei pensando com meus botões. Saberíamos nós, brasileiros, nos comportar com tanta presteza?
O importante é que todos estamos bem e sem problemas maiores. Mas o comportamento civilizado que vimos não foi unânime. Num supermercado, uma senhora de idade, que conseguira comprar o último estoque de água, fora agredida a socos por rapazes que tomaram seu insumo à força. A polícia teve de atuar.
Durante o vendaval, reparei que caminhões com guinchos estavam se dirigindo para dar manutenção em postes. Apesar de ter havido interrupção de energia elétrica para trezentas mil pessoas — nós não sofremos isso —, os trabalhos não pararam. Uma camionete do Corpo de Bombeiros também enfrentou o vento. E, aqui no hotel, nada parou. Tudo foi como uma incômoda prisão domiciliar. Nada mais.
Mas, atenção, não podemos desprezar todo o aparato de defesa antecipado. O americano está ainda com as lembranças do Katrina, de nível 5, que arrasou Nova Orleãs há doze anos atrás. Ele sabe se prevenir.
*Engenheiro e escritor.