O blecaute por detrás da cortina insiste, não tolera que o sol exerça sua luminosidade em minha sala, no entanto abro as bandeiras da janela e descobrimos, eu e a namoradeira do parapeito, que o mundo não exala tanto cheiro de mofo quanto pode parecer.
Não sou historiador, antes de tudo. A história que me encanta diuturnamente é a inventada, a que resulta dos humores e do espírito do escrevinhador ficcionista, esse aprendiz de deus com duas caras: humano porque também criador e ao mesmo tempo incompleto porquanto artista. Mesmo assim, o passado e o presente, objetos da História, muitas vezes me fazem um observador do nada, como se nele existisse algum horizonte. Fico ensimesmado, às vezes na janela, com a similaridade da História quanto à ficção, no que elas podem ter de inverossimilhança. Essa adjacência me faz acreditar, mão no queixo e sorriso bobo, que História e Literatura por certo são duas dimensões do imperativo de narrar.
Assim, indiscutivelmente desautorizado, segundo acabo de prevenir a quem interessar possa, a respeito do assunto divago como divagam as tradicionais esculturas do artesanato brasileiro, chamadas namoradeiras, uma das quais ao meu lado, na janela: deslumbradamente. A História, acredito, é a inevitável força dialética conformada a um mecanismo invisível, porém detectável, e que carece de originalidade. Nesse sentido, assemelha-se à Literatura, na medida em que ambas trabalham com um horizonte limitado de enredos, repetindo-os ao infinito, com variantes tão hábeis que às vezes se fantasiam de novidade.
No caso da História, as mutações das peças-chave da narrativa ocorrem conforme o período temporal. Assim, os personagens históricos não agem tão autonomamente quanto os livros didáticos pretendem nos fazem crer, e às vezes nem mesmo há aquele voluntarismo típico da figura heroica; a força do indivíduo enquanto senhor de si próprio se esfarela, vira sofisma diante da energia de movimentações coletivas: eles, os personagens de determinado tempo histórico passado ou presente, fazem apenas ocupar uma função antes já ocupada por alguém e que no futuro também o será, por personagens outros. Não à toa fazemos uso de expressões, em nosso cotidiano, do tipo “ser o cristo da vez”.
Amamos um Cristo para chamar de nosso, aliás. Essa função sempre se mostra ao longo da história brasileira, e talvez o caso mais emblemático tenha sido Tiradentes. Mas há outro exemplo, contemporâneo, finalização de uma crônica de morte anunciada e kafkiana. Há poucos meses saiu do cozimento em banho-maria (ou da fritura, é ao gosto do freguês), e suas consequências não podem ser amplamente analisadas sem que se dê ao tempo o devido tempo.
A maneira como reagiu parcela da sociedade brasileira à ameaça do impedimento da presidenta da república, por fim consumada pelo Senado Federal, expôs dentre tantas palavras de ordem uma que me chamou particularmente a atenção: “volta, querida!”. Ela carregou um apelo emocional — como alguém que, lágrimas nos olhos, se despede de outra pessoa — e, em simultâneo, uma reivindicação política preponderante à qual várias se agregaram.
A soma de ambas as faces dessa história, a emoção e a política, me remete a outra: o Sebastianismo, fenômeno histórico do século XVI surgido em terras lusitanas, baseado na crença do retorno de D. Sebastião, monarca falecido em campo de batalha, cujo cadáver jamais foi descoberto e sepultado. Esse regresso, acreditava-se, traria em seu bojo a recuperação dos anos de glória do povo português. Seria, portanto, uma reedição da volta do messias judaico, com uma natureza política que, nem por isso, excluía certa aura divinal.
No paralelo que traço com a ex-presidenta, o retorno dela ao comando do país, caso o Senado tivesse deliberado pelo caminho oposto, traria aos cidadãos que a apoiavam a esperança de que, mesmo não atingindo as metas propostas na campanha eleitoral, ao menos a democracia e os avanços já conseguidos estariam assegurados. Desse modo, sobreviveria a esperança de que importantes conquistas da sociedade civil jamais seriam sequestradas por forças adversárias da justiça social e, por assim dizer, do “território cidadão” que se instalou no imaginário de numerosas parcelas da sociedade desde a chegada do partido da ex-presidenta ao comando do Estado brasileiro.
Falando em território, e voltando à comparação, é interessante observar que o desaparecimento de D. Sebastião contribuiu decisivamente para que Portugal fosse coibido de exercer sua autonomia política, na medida em que foi anexado à Espanha por longo tempo. Assim, seria o caso de perguntar: com o desmoronamento de Dilma, a terra de muitos, que estava em lentíssimo processo de construção, voltará a ser curralzinho de poucos? O país de todos certamente ficará circunscrito ao país dos de sempre —muitas vozes dizem.
Outra similaridade que vejo a partir de minhas janelas com namoradeiras está no fato de alguns estudiosos da história de Portugal sustentarem que Dom Sebastião, cujo reinado teve duração muito breve para os padrões monárquicos, era despreparado para o cargo, além de imprudente. Não foram essas características pejorativas, dentre outras, que se tentou associar à presidenta, alcançando irrefutável êxito no imaginário de amplas camadas da população, e provocando em outras, após o impedimento, saudades do que teria sido?
O tempo ainda não caminhou o bastante, talvez eu esteja precipitado querendo enxergar um crepúsculo em pleno meio-dia. Melhor fechar a janela e as cortinas com cuidado, recolher-me à penumbra provocada pelo blecaute. No entanto, não posso negar a mim mesmo: sinto um forte cheiro de mofo (sim, nessa casa há fantasmas a temer) ao mesmo tempo em que ouço a namoradeira espatifar-se no chão, aqui na antessala, fruto de meu atabalhoamento.
Se ela ficava na janela, alheia, vendo a banda passar, já não fica mais. Seus estilhaços me encaram e passo a considerar o paralelo com o Sebastianismo um exagero militante, talvez. Melhor conter-me. E enquanto volto às palavras, cogitando refazê-las, me veem à memória os seguintes versos de “Sebastiana”, um belo coco de Jackson do Pandeiro: “já cansada no meio da brincadeira / e dançando fora do compasso”
Pensando bem, tudo a ver.
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