Para a amiga Débora Santana Caetano.
Por Anaximandro Amorim
Paris, 1950. Em meio a uma multidão frente ao Hôtel de Ville, um casal, arrebatado pelo romantismo da Cidade-Luz, resolve se entregar em um tórrido beijo. A cena, protagonizada pelos atores Françoise Bornet e Jacques Carteaud, foi imortalizada pelo fotógrafo Robert Doisneau (1912-1994) que, anos mais tarde, disse tudo não passar de uma montagem, para tristeza dos apaixonados de plantão. Nem ligo! Verdade ou mentira, há poesia naquela imagem. Se fosse uma "selfie", a coisa toda mudaria de figura.
Sempre gostei de fotografia. Minha primeira câmera fotográfica foi uma Kodak analógica, "herdada" dos meus pais (que, a essa altura, haviam comprado uma automática) e minha primeira tentativa fotográfica se deu em 1989, numa visita de escola à Marinha, em Vila Velha (ES). Era uma aventura: ter 12, 24 ou 36 tentativas e esperar uma semana para ver se ficou bom. Todas as fotos saíram tremidas. Mantenho o álbum até hoje, como recordação do fotógrafo frustrado que fui.
Hoje é tudo mais fácil... mas, também, banal. Lembro-me da propaganda de um dos primeiros celulares com câmera. Um ator, interpretando um paparazzo, perseguia uma celebridade, tirando fotos sem perceber. Hoje, ao que parece, todo mundo quer ser sua própria celebridade. A imagem triunfou sobre o texto e redes sociais há que convidam ao narcisismo. Todos nós já caímos em tentação, incluindo este cronista. Os álbuns saíram da caixinha de sapato e foram para a internet. Seria uma vontade de se imortalizar ou de se criar seu próprio culto à personalidade? Talvez, um pouco dos dois.
Essa loucura de "selfie" ganhou um tom específico. Poucos sabem, mas, a técnica da "autofoto" é tão antiga quanto a invenção da fotografia. E difícil, também. A lente da câmera não é igual ao olhos humano e pode deformar o rosto. Conheço pessoas que não gostam de "selfie" por causa disso. Prefiro tirar de contra o espelho. Mas há o inconveniente de inverter a imagem. Tem gente que não liga, no entanto. E vive fazendo "selfie", muitas vezes, da forma e em lugares mais inusitados! Seria isso tudo um sintoma de solidão? De individualismo? Ou a crença de que um profissional é dispensável?
Ao contrário do que apregoavam os arautos do caos, a profissão de fotógrafo não se acabou. Como tudo, ganhou ressignificação. Vejo-os como poetas da fotografia. Tenho alguns amigos assim, um em especial. Como uma verdadeira arte, a fotografia ganhou caminhos, formas, maneiras de ser. Há quem capte o efêmero; quem procure o sublime; ou quem monte o real. Por que não? Se não é a realidade uma produção individual? Por que não deixar que uma foto não nos crie um efeito? Não nos faça sonhar?
A foto de Doisneau foi leiloada em 2005 por 155 mil euros. Fosse uma "selfie", certamente, não teria o mesmo valor... ou a mesma poesia! O fotógrafo, décadas depois, disse que ninguém se deixaria beijar em público daquele jeito. Eu entendo. Os franceses costumam ser muito discretos quanto à sua vida pessoal. Fora a questão da época. No entanto, fake ou não, aquele beijo, até hoje, mexe com o nosso imaginário. E comprova que o olhar arguto de um bom fotógrafo independe de verdade ou tecnologia.
* Advogado, Escritor.
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