Por Aylê-Salassié F. Quintão*
Dentro de uma semana começa o retorno à Havana de mais de 4.000 cubanos do programa Mais Médicos. Alguns não voltarão porque desertaram, outros porque se casaram ou tiveram filhos por aqui, ganhando com isso a possibilidade de legalizar sua situação no Brasil. Para substituir os que se vão, Cuba, embora tenha ameaçado retirar todos eles do Brasil em protesto contra o impeachment, pretende mandar uma nova leva de mais 400 a 500 médicos, mas o governo brasileiro diz que tem preparado também cerca de 1.500 profissionais para ocupar os lugares que vagarem.
Em 2013, o Brasil recebeu perto de 11.400 mil médicos estrangeiros, em sua maioria cubanos, mas também bolivianos, peruanos, colombianos, portugueses, espanhóis. Envolvia um universo potencial de 52 milhões de pacientes. Foi um acordo negociado entre os governos Dilma, via Organização Pan-americana de Saúde, e o de Raúl Castro. Deu consequência a um programa, cuja finalidade era expandir o atendimento à saúde à populações desassistidas do interior e das periferias das grandes cidades, com IDH baixo e muito baixo. O programa foi oferecido aos médicos brasileiros, mas o desinteresse foi grande. Poucos concordaram em participar dele, ganhando o salário de R$ 10,2 mil.
A chegada dos médicos cubanos - e de outros países - foi um drama, porque a classe médica reagiu com hostilidade para tentar proteger espaços que consideravam seus. Diziam que os cubanos não tinham formação adequada em medicina e, aproveitando-se das rusgas com a Venezuela, de onde vinha boa parte dos médicos cubanos, onde eram chamados de “doutores do povo”, tentou-se estigmatizá-los de “médicos guerrilheiros”. De que eles se ocupariam quando não estivessem atendendo? Constatou-se que eles frequentavam as festas familiares, iam aos jogos de futebol locais e namoravam.
Embora cerca de 100 cubanos tenha abandonado o programa, encerrado o prazo de três anos, muitos haviam se adaptado às condições brasileiras e recebiam, inclusive, o carinho das comunidades. Findo o prazo do contrato com a OPAS, prorrogado por mais três anos, com salário reajustado em mais 9,5% (R$11.200) e um valor maior retido, no Brasil, nas suas próprias contas, 62% dos profissionais manifestaram disposição de permanecer no Brasil, acreditando, contudo, ainda, não terem a necessidade de fazer o chamado “Revalida” – exame que legitima o diploma obtido no exterior. Seria dado prioridade aos que já estão por aqui, e conhecidos das comunidades. Só iria embora mesmo quem quisesse. Várias prefeituras tomaram a iniciativa de pedir a sua permanência.
Para o ministro da Saúde, Ricardo Barros, recompor o programa, hoje com 18.840 profissionais, e garantir aos municípios equipes de saúde completas, é uma preocupação a mais. A intenção do governo é substituir gradualmente os profissionais estrangeiros por médicos brasileiros. Estima-se que, já em 2017, o número de médicos cubanos participantes do programa sofra uma outra redução, abrindo para os brasileiros outras 4 mil vagas..
Cubana que atende a uma cidade do interior do Nordeste, e que prefere manter-se no anonimato, salienta que muitos cubanos optam ficar mais no Brasil . Mesmo assim, a renovação dos contratos não dispensa um rearranjo interno. Ao invés de ser um “Mais Médicos” o programa deveria chamar-se “Mais Saúde”, agregando enfermeiros, fisioterapeutas, dentistas (grande o número de desempregados nessas áreas), e estabelecendo um padrão de suporte logístico para cada equipe. Dezenas de municípios não cumpriram os compromissos com o programa. Alguns por irregularidades na gestão, outros alegando não ter condições materiais de dar suporte local aos médicos estrangeiros, e outros ainda por pobreza mesmo. As dificuldades encontradas foram muitas: Postos precariamente equipados, poucos hospitais disponíveis no Norte e Nordeste, recursos técnicos deficientes ou inexistentes e medicamentos escassos.
De tal forma que Ortelio Jaime Guerra abandonou a cidade de Pariquera-Açu, no interior de São Paulo, por razões até de segurança, e foi para os Estados Unidos. Ramona Rodriguéz, conseguiu um “refúgio provisório” no Brasil, já que não suportava mais ter de pedir autorização aos supervisores cubanos para tudo que ia fazer. "Estou há quase 20 anos trabalhando para Cuba — só na Venezuela ficou nove anos — Quero decidir minha vida", diz o, médico cubano, N.B., 49 anos, que atende na região Sudeste. No entender de Havana, a renovação reduz as chances da permanência. Trata-se de um programa que o país desenvolve junto com suas 30 escolas de Medicina, e que mantém ativa as exportações de serviços de saúde. Atende na África, na América Central e em dois a três países da América do Sul. Absorve anualmente cerca de 3.000 recém formados. O programa dispõe de 70 mil médicos, a maioria clínicos gerais, preocupados com a saúde primária. Emprega muito, mas remunera mal. Para o anônimo, “Pode escrever: “No Brasil, muitos vão abandonar o programa, se tiverem de retornar .”
*Jornalista, professor e doutor em História Cultural