Por Anaximandro Amorim*
Para o amigo e mestre José Antonio Martinuzzo
"De fato, Funes não apenas recordava cada folha de cada árvore de cada monte, mas também cada uma das vezes que a havia percebido ou imaginado". O trecho, de um conto de Borges, chamado "Funes, o memorioso", conta a história de um personagem homônimo, que tinha prodigiosa memória, lembrando-se de, absolutamente, tudo da sua vida. Benesse? Desgraça? Seria o esquecimento tão importante quanto a memória? Ou será que, neste mundo louco em que vivemos, estamos esquecendo demais da conta? Afinal... qual é o lugar da memória?
Conceituar memória é uma tarefa difícil. Mas, arrisco: seria uma operação entre o lembrar e o esquecer. Exatamente: lembrar-se é, sem dúvida, um elemento do processo mnemônico, é o resgatar das experiências mais relevantes e, para isso, o esquecimento tem papel fundamental. Com o tempo, vamos classificando as lembranças, esquecendo o que é, em princípio, irrelevante e, até, recategorizando, ressignificando aquilo que foi lembrado. Todo mundo já passou por isso. Aquele rosto, tão nítido, ganha novos matizes, esmaecendo-se ou congelando-se de acordo com o grau de importância que damos para ele.
Memória não é história, mas tem a ver com ela. A história vai mais além, ela se utiliza das memórias, dentre outras fontes. No entanto, memória também cria história. Porque, ao buscar aquilo que pauta nossas lembranças, também fazemos história. Só que, de uma forma diferenciada, identitária. Pois somos todos a síntese constante entre o lembrar e esquecer e, nesse movimento dialético, construímos a nossa história, que, somada às dos outros, contribui para um todo maior. Para deixar nossa marca no tempo.
Em épocas de redes sociais, entretanto, é muito comum queixas do tipo "Eu não consigo lembrar de mais nada". Para mim, essa é uma das maiores ciladas do mundo contemporâneo: estamos depositando nossas memórias em bancos de dados. Em última análise: estamos terceirizando-as. O álbum de fotos, que ficava na caixinha de sapatos, nos dava trabalho de saber onde estava e quais fotos havia. Hoje, elas estão na internet, a um clique. Classificadas como nos aprouver, por data ou local ou o que quer que seja. O problema é: você já percebeu como é difícil resgatar uma lembrança, em uma rede social? Vi gente perdendo fotos, às vezes, textos inteiros. Tive uma amiga que perdeu os textos de um futuro livro. Tudo foi apagado da memória.
Isso tem, aliás, uma outra agravante: esses bancos de dados são, em última análise, empresas privadas. Exatamente: estamos dando nossas memórias, de graça, para garantir o lucro dessas pessoas. E elas andam ganhando dinheiro com isso. Muito dinheiro. O "negócio da memória" é uma empresa tão sutil que, sem perceber, estamos cada vez mais escravos dela. Não nos lembramos de nada. Precisamos, a todo instante, recorrer a bancos de dados, às redes sociais. Estamos ficando individualistas, viciados. Temos dificuldade em nos concentrar. Tudo entedia rápido. Estamos mais infelizes, insatisfeitos. E achamos graça quando essas mesmas redes nos concedem o beneplácito de resgatar alguma lembrança perdida no mais recôndito da memória.
Vint Cerf, vice-presidente do Google, já nos alertou, em uma entrevista, que podemos perder todas as memórias do Século XXI. Estamos fadados a sermos uma espécie de "Funes às avessas". Não, leitor, não estou aqui tecendo um libelo contra as redes sociais. Gosto delas, preciso delas, até. Mas, talvez, neste mundo do efêmero, resgatar o álbum na caixinha de sapatos pode ter um outro simbolismo. Esvaziar-se de memórias é tornar-se menos humano. Esse, talvez, seja um dos maiores desafios da nossa era: reaprendermos o lembrar e o esquecer. E, bem mais que em um banco de dados, guardar o que for relevante na cabeça. Sem nos esquecermos do que guardamos no coração, também.
* Advogado, Escritor; Publicado também em anaximandroamorim.com.br
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