Por Anaximandro Amorim
Eu sempre achei que os franceses, até hoje, pensam o Brasil como uma espécie de Éden Perdido, um paraíso nos Trópicos, cheios de animais e plantas exóticas, onde o sol brilha o ano todo e a tristeza não existe. Tantos foram os viajantes que botaram aqui os pés, a vida toda ou por pouco tempo: Villegagnon, Jean de Léry, Debret, Lebreton, Claude Lévy-Strauss, dentre tantos. Mas é de para um viajante contemporâneo que eu dedico esta crônica. O meu amigo François-Mary Boureau.
Conheci François antes de conhecê-lo. Um belo dia, em uma rede social, recebo o convite de um tal de "Labasoche Francis". Meio desconfiado, dei uma olhada para ver quem era e logo percebi que se tratava de um francês, que vinha adicionando os vários amigos em comum da Aliança e deixando mensagens em um texto escorreito, que só um nativo ou alguém muito próximo de um poderia escrever.
Conversa vai, conversa vem, e nós marcamos um encontro no lançamento do meu "O Livro dos Poemas", de 2013, na Escola de Artes Fafi, no Centro de Vitória. A ocasião não poderia ser melhor: unimos literatura com francofonia. E foi assim que eu vi aquele jovial senhor, alto e elegante, educadíssimo, ao lado da esposa brasileira, uma simpática descendente de japoneses, vinda de São Paulo. O nome dele: François. Nada mais francês. O dela, Marina, sua paixão pelo resto da vida.
Nossa amizade se unia pelo amor pela língua francesa. Isso foi crucial para fazer com que François e Marina se sentissem cada vez mais acolhidos nesta terra capixaba, que tanta gente recebe de braços abertos. Apesar da forte presença italiana, o Espírito Santo teve uma grande influência cultural francesa, que data da segunda metade do século XIX. Isso é tão verdade que, antes de haver um hino e uma bandeira capixabas, cantava-se aqui a Marselhesa e usavamos a bandeira francesa. E com tantos edifícios de nome francês, François e Marina, cansados do ritmo paulistano, não pensaram duas vezes em se fixar aqui.
Com o tempo, nossa amizade se tornou, praticamente, uma irmandade. Foi essa "família de amigos" que lhe deu o suporte quando ele perdeu a mulher; e não só isso, mas que cuidou de toda a burocracia, estando nos maus e nos bons momentos que, no saldo, foram maiores. E porque nosso François não negava a tradição culinária francesa, nós nos uníamos, mensalmente, na casa de um dos amigos, para apreciar as iguaria que ele fazia. Ele e todos nós. Exceto eu, claro. Que não sei nem fritar um ovo!
Aos 72 anos, ele estava mais ativo do que nunca. Capitaneava um webjornal, o "Brésil-Infos" e vivia na ponte aérea Vix-Rio-SP-França. No final, comprou uma câmera ultramoderna, que usaria após visitar as filhas na França, Sophie, Virginie e Julie, seus três tesouros. Eu o estava esperando, ansiosamente. Havia escrito um romance em francês. Ele estava revisando. Tínhamos marcado um vinho "nacional", como eu brincava. Não foi possível, no entanto. Ele me pediu um tempo, pois havia ingerido sardinhas com salmonela e estava se sentindo muito fraco, incapacitado em receber visitas.
Eu iria proferir uma palestra sobre a "Missão Francesa" de 1816 e resolvi convidá-lo. Nada mais apropriado. Mandei uma mensagem, mas ele não respondeu. Mandei de novo. Achei aquilo estranho. Escrevi para uma amiga em comum. Nada. Quase fui à casa dele. Até que, uma semana antes do evento, recebo um telefonema de outra amiga, da França. François havia morrido em casa. Provavelmente, vítima de uma queda, o organismo enfraquecido.
Não foi apenas a tristeza de perder um amigo, mas todo um problema burocrático, que envolveu um amigo do Consulado de SP e uma amiga do Vice-Consulado daqui, além de algumas "desventuras", aumentando ainda mais o sofrimento das filhas. A alegria (porque, sim, há também essa perspectiva), foi ter ganhado novos amigos. Hoje, nosso amigo François descansa ao lado da mulher que tanto amou, nesta terra de que ele sempre dizia "Chez moi est ici" (Minha casa é aqui).