Por Helder Gomes*
Estimulado pelo professor Guilherme Henrique Pereira, tentarei produzir uma série de pequenos textos para incentivar o estudo sobre a natureza do Estado capitalista e suas formas de intervenção em países como o Brasil. Neste primeiro rabisco tento apresentar um breve resumo de várias correntes de pensamento que discutem esse tema. No entanto, inicio com a negação de algumas verdades que acostumamos a ouvir acerca do assunto, com o intuito de provocar logo de pronto o debate.
A primeira provocação poderia ser expressa da seguinte maneira. Apesar de ser uma tese bastante difundida, um olhar um pouco mais rigoroso revela que não dá para aceitar o tal Estado Democrático de Direito como uma instância externa, neutra, que paira acima da sociedade, como forma de promover o bem comum, o bem-estar social, ou coisa do gênero. Da mesma forma, aprofundando um pouco o olhar, percebe-se que o Estado não se resume aos seus aparelhos de decisão, de repressão e de prestação de serviços públicos. Então, vejamos o que podemos apreender com os estudos acumulados sobre o tema e, assim, deixo o convite para que me acompanhem nesse desafio ao longo do próximo período.
De um modo geral, o debate acerca da natureza do Estado pode ser resumido em três perspectivas básicas. De um lado, podem ser agrupados os teóricos que procuram vincular a ontologia do Estado a uma necessidade natural do ser humano à organização social, a partir de decisões individuais. De caráter atomista, essa perspectiva vê nas escolhas de cada indivíduo a busca pela eliminação do conflito potencializado por um estágio idealizado de Estado de Natureza. Neste, as diferenças naturais entre indivíduos levariam necessariamente à barbárie, exigindo assim, a alienação da soberania individual em favor de alguma forma de convívio social, condição que igualaria as oportunidades individuais de direito à propriedade e à liberdade. A somatória das vontades individuais resultaria na constituição de um contrato social, cuja estabilidade requereria a presença de um ente externo, superior, que se autonomizaria acima da sociedade, como garantidor do pacto formalizado. Esse ser supremo seria o Estado. Desde Thomas Hobbes, até Milton Friedman e seus seguidores, existe uma variedade de teses que acompanham essa perspectiva liberal do Estado moderno.
Numa outra vertente teórica se colocam autores que procuram vincular a noção de Estado à concepção de luta de classes. Ao contrário da visão atomista, a-histórica por excelência, esta prefere uma abordagem não universalista, mas sim, determinada no tempo e no espaço, em busca das especificidades intrínsecas às sociedades capitalistas, cujo movimento se dinamiza nas contradições características das relações de exploração. O Estado seria, então, derivado da exigência imanente de manutenção de uma superestrutura que, ao mesmo tempo, congregaria elementos políticos, ideológicos, jurídicos e militares, a fim de garantir a supremacia exploradora de uma classe sobre outra.
Pelo menos duas correntes podem ser identificadas a esta vertente mais geral de dedução do Estado da luta de classes. De um lado, podem ser agregados autores que entendem o Estado capitalista como comitê privilegiado da burguesia, cuja função seria manter as relações econômicas de expropriação do trabalho alheio, através de instrumentos coercitivos de dominação (Vladimir I. Lênin tem sido um expoente de tal perspectiva). De outro lado, é possível observar pensadores que propõem o entendimento das relações de Estado concebendo uma interação entre sociedade civil e sociedade política, que se constituem numa totalidade de reciprocidades superestruturais, ou seja, no Estado. Nessa perspectiva, a correlação de forças político-ideológicas constituídas na primeira dimensão dessa totalidade (na sociedade civil) seria determinante da configuração político-institucional resultantes na segunda (na sociedade política). A dinâmica dessas interações superestruturais se manifestariam numa relação de hegemonia e consentimento entre as classes sociais e entre seus segmentos, determinando, assim, uma configuração geral para as relações infraestruturais específicas entre capital e trabalho (posição referenciada nas obras de Atonio Gramsci).
Uma terceira concepção procura derivar logicamente a natureza do Estado da relação do capital. Aqui, procura-se enfatizar o Estado capitalista como uma necessidade orgânica do capital, ou seja, aquele atuaria no sentido de reduzir os impactos provocados pelas contradições internas do movimento do capital, tanto no que tange à luta de classes, quanto no que tange às crises periódicas provocadas pela tendência à queda na taxa de lucros (neste caso, Elmar Altvater e Joachim Hirsch são algumas das referências).
Cada uma dessas três abordagens gerais procura combinar elementos explicativos das formas de relação do Estado, ora com a sociedade, ora com as classes sociais, ora com o capital. Assim, o Estado tem sido considerado, de um lado, totalmente independente em relação à sociedade, às classes sociais, aos segmentos de classes, a este ou aquele indivíduo, ou a um grupo de indivíduos em particular. É definida, assim, uma autonomia absoluta do Estado. No outro extremo, tem sido defendida a tese do Estado como um instrumento de poder de uma determinada classe social, ou até mesmo de um segmento dessa classe (por exemplo, nas teses sobre o capitalismo monopolista de Estado), o que eliminaria qualquer hipótese de autonomia estatal.
Espero conseguir, na sequência dos textos pretendidos, mostrar uma posição crítica em relação a um aspecto que entendo como fundamental. Boa parte das abordagens mais contemporâneas sobre a natureza do Estado acaba se prendendo a uma armadilha bastante comum, mantendo certo caráter de exterioridade vinculado ao Estado capitalista. Não é raro observar alguma afirmação sobre supostas relações entre o Estado e a sociedade, por exemplo, o que denota certa dificuldade em tratar a superestrutura jurídica, política e ideológica compondo uma totalidade com a infraestrutura econômica e social em cada nação.
Pretendemos, pois, contribuir para a superação de tais obstáculos intelectuais, procurando caracterizar o Estado como organicamente vinculado às relações essenciais do capital. Dessa forma, talvez fique mais explícita a exigência de que o Estado se apresente aparentemente neutro, a cuidar dos interesses de toda a sociedade, podendo, assim, esconder sua constituição a partir das contradições fundamentais das relações mercantis capitalistas, que há muito se encontram organizadas em nível mundial. Esse caráter mundializado é muito importante ser considerado, para se aproximar das formas diferenciadas de intervenção que o Estado assume em nações subordinadas, dependentes, como o Brasil.
Helder Gomes é economista e doutor em Política Social.
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