Por Delano Câmara
O arquiteto me diz: ”vamos retirar esta parede daqui e dividir o quarto com laminados de madeira de lei. Assim, cabem folgadamente o senhor, a sua mulher e ainda sobra espaço, caso o casal pretenda colocar uma geladeira pequena naquele canto.”
A decoradora não concorda e não faz por menos: “não é o caso de arrancar a parede. A gente redesenha a cama, decora a cabeceira com prateleiras em “z”, nelas o senhor coloca os seus livros, a televisão, o vídeo e ainda vai ter lugar suficiente para aquele monte de retratos que estão espalhados pelo quarto do rapaz.”
Ouço tudo em silêncio, mas na verdade nada escuto. Estou eu aqui perdido no meio da minha bagunça e me sinto como um bêbado que vê a rua passar por si, e às cambalhotas. Pelos meus olhos já desfilaram velhos e esquecidos sapatos, gravatas das quais sequer me lembro que um dia apertaram o meu pescoço e a minha alma, e até uma velha máquina fotográfica Olympus comprada em um contrabando de feira do Paraguai e que os fungos acabaram por transformar em objeto próprio para loja de antiguidades.
Ai de mim – digo e repito aos meus próprios botões – ai de mim que estou me mudando para um outro apartamento.
Fico a um canto e prefiro rir em silêncio da conclusão à qual cada um está chegando, enquanto minha mulher, que já há algum tempo nem se lembra mais que existo, dado o meu mutismo e a minha absoluta incapacidade de opinar sobre isto ou sobre aquilo, se aquele quadro fica melhor aqui ou naquele outro lado da parede, sugere que aquele móvel de madeira brilhante talvez fique mais bonito no cantinho da sala. Ou talvez, quem sabe, aquela velha cadeira pintada de verde musgo talvez se identifique mais com as plantas que vão ficar na varanda do apartamento.
Bem, mas não está tudo tão mal assim e tanto isto é verdade que, finalmente, lembram de mim. Parece que andei ouvindo que vão separar um pequeno escritório onde eu possa ficar sozinho para escrever crônicas, dar asas aos pensamentos sórdidos com os quais às vezes costumo traçar o perfil do meu próprio imponderável e, vez ou outra, até me embriagar em silêncio. Deixo assim que programem – eles lá que entendem do assunto – o que vai ser este novo mafuá onde vou certamente viver pelo resto dos meus dias e onde também, já à esta altura da vida, vou precisar guardar em absoluto segredo as minhas lembranças, o fervor de uma ou outra mulher que possa ter me amado e até a recordação dessas bobagens que se cometem na vida e que possam me trazer um pouco de saudade.
Parece, enfim, que chegaram a um acordo: fica a parede, os livros vão ser colocados na estante do quarto do rapaz, eu continuo do lado direito da cama, assim no sentido de quem olha posicionado aos seus pés, e a televisão vai ser colocada no alto, um pouco à esquerda de quem está deitado. A cortina vai ter um tom salmão e a fechadura da porta que dá acesso ao banheiro, depois do “closed”, deve ter uma cor dourada com mesclas suaves de preto. O relógio de parede, de seu turno, precisa ficar posicionado de tal forma que não seja preciso virar muito a cabeça para se saber das horas.
E eis-me aqui, atônito, zangado, e sem nada entender, escutando os “blá blá blás” desta ordem.
Invento uma desculpa, digo que preciso ir ao banco, deixo o apartamento e me sento lá no fundo do bar da esquina para que ninguém me veja, e respiro aliviado. Gostei do ambiente e do dono e acho que vou fazer daqui o meu quartel-general para esses assuntos alcoólicos de finais de expediente. Peço então uma cerveja e repito para mim mesmo que vai ser bom morar ali, mas só depois que o arquiteto se jogar pela janela e a decoradora seguir imediatamente o seu exemplo.
Aí depois eu retorno ao apartamento e, nesse meu jeito desengonçado de ser, arrumo eu mesmo a minha desordem e o meu ninho, e tudo de forma tão boa e tão fortemente minha como se nele tivesse então que dormir, que sonhar, e só então silente e suavemente morrer.
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