Aylê-salassié F. Quintão*
Associada às medidas estabilizadoras que o governo vem adotando nessa mudança de 2016 para 2017, a figura da pinguela faz lembrar, primeiro, “os doze trabalhos de Hércules”, que realizados desmistificou e esvaziou uma série de crenças; segundo, os rituais de passagem que assinalam, em geral, o fim da infância e o início da idade adulta, mesmo em se tratando de uma nação, como parece ser o caso brasileiro.
Controle fiscal, reforma trabalhista, nova lei da educação , combate à corrupção surgem sob a forma de pacotes inspirados em disfunções sociais com o sentido de aparar arestas que se interpõem no caminho de mudanças estruturais. Assim, os velhos “pacotes estabilizadores” recheados de medidas econômicas”, que tanto atormentaram os governos militares, foram retomados como “ponte para futuro” . Na realidade, funcionam como uma pinguela e, ao mesmo tempo, como um rito de passagem. Vieram em auxílio à tal de ”Travessia”, que naufragou sem tornar explícito o que pretendia.
No fundo, os pacotes tentam corrigir ou emendar políticas públicas improvisadas, contrapondo-se a metas fantasiosas. Com uma retórica forte de aparência sofrida, mas também retrógrada, são iniciativas casuísticas, sem grande alcance na história. Tendem a se vulgarizar de tal maneira que terminam perdendo o efeito. Mas a expectativa de agora é de que esses pequenos ajustes, oferecendo respostas curtas para as amplas angústias coletivas, sobrepostos, conseguirão abrir o caminho para o futuro.
Espera-se com eles dar suporte para superar um momento histórico, sem se importar, de fato, com os sacrifícios ou facilidades criadas por eles. Indolores muitas vezes, buscam amenizar aflições temporárias, como este que autoriza o uso parcial dos recursos do FGTS. Trata-se de uma tentativa de acomodação das ansiedades. Traz, contudo, algumas virtudes imediatas: injeta recursos no mercado, permite a recomposição de créditos no comércio e alivia tensões familiares. Mas existem também pacotes rituais que exigem que o sujeito se lance de 30 metros de altura no vazio, amarrado apenas a um cipó no tornozelo, podendo se arrebentar de cara no chão. Trata-se de um tipo de teste de afirmação do indivíduo.
Com tudo isso, para que os pacotes, em seu momento de passagem, consigam estabelecer uma plataforma de arremesso para o futuro, não sei se a pinguela ofereceria a segurança adequada. Ter um lugar no Monte Olimpo exigiu de Hércules o desenrolar de uma pacote de penitências, que previa enfrentamentos de serpentes com várias cabeças , o Leão de Neméia, o Touro de Creta, os Bois de Geriòn, doze desafios ao todo, que a mitologia alimentava com insuperáveis, mas que sem transpô-los ele não chegaria a lugar algum. Era uma questão de ganhar todas. Para isso exigia-se precaução, habilidade e coragem.
Não são poucos também aqueles que fantasmagoricamente insistem em apregoar, como Nostradamus, o “fim dos tempos”, pelo menos de uma época de épicas fantasias. Na realidade, mais amedrontados que os demais, cultivam rituais à busca do perdão antecipado dos pecados ou da salvação.
Mas, para uma Nação de cultura ocidental, como o Brasil, não tem sentido, o que fazem, por exemplo, os hinduístas do Nepal. Na sua festa dedicada à deusa Gadhimai, onde acontecem os sacrifícios, na expectativa de que coisas novas e boas vão acontecer na vida de cada um nos dias vindouros, numa sexta-feira (dia 24.11) sacrificam mais de 300 mil animais , transformando ruas, avenidas, praças, igrejas, enfim o país num maior matadouro do mundo. Durante dois dias são degolados cabras, ovelhas, cavalos, búfalos, ratos. É uma tradição de séculos que até hoje não resolveu os graves problemas do país.
Pragmático, Stephen Hawking, um dos grandes físicos da atualidade, insurge-se contra essas práticas, mas não perde a oportunidade de insinuar-se como um Nostradamus da modernidade. Como um sábio, dá o tom para o momento de passagem da sociedade, sem excluir ninguém, nem país algum, ou seja, o Brasil está dentro. Prevê que, independentemente de qualquer esforço ritual ou de Estado, a partir de 2017, a indústria da tecnologia, antes de ajudar a construir, vai contribuir efetivamente para a renegar a estrutura e as concepções da sociedade atual. Ao explicar, vai confundir. “O crescimento da inteligência artificial provavelmente vai estender essa destruição de empregos, sobretudo, nas classes médias”. Diz ele que valores começarão a ser deixados para trás, esvaziando não só a noção moderna de sujeito, como também a ritualística ética fundada no dever e na obrigação. O prazer e a busca do bem-estar vão impactar os comportamentos na sociedade.
Se forem consumadas as previsões do mago da física, pacotes casuísticos, pinguelas e rituais de passagem ajudarão pouco. Não se trata de pequenos ajustes e acomodações de situações e causas, mas de preceitos e conceitos, que no Brasil tem vindo de fora, capazes de configurar um destino e uma identidade. Ao mesmo tempo, a introdução de medidas fortes deveriam refletir um esforço feito nesse momento da passagem para gerar uma plataforma de futuro. Exige-se para isso massa crítica descomprometida ideologicamente, ousadia e seriedade para desarmar cenários e projetar um Brasil entrando na idade adulta. Pacotes e rituais não mudarão o homem que é a essência do processo civilizatório. Está mais fácil ele mudar sozinho, com ou sem pacotes.
*Jornalista, professor doutor em história cultural
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