O fato aconteceu aqui. Chegou, contudo, ao conhecimento dos brasileiros muito tempo depois, por meio das agências noticiosas internacionais. Enquanto ocupavam-nos das esperanças editadas pelo governo para 2017, um fotógrafo e um sertanista sobrevoavam de helicóptero, sem autorização, um grupo de índios isolados em território acreano, levando o pânico aos nativos. A aventura jornalística apareceu nas páginas da revista National Geographic, e foi reproduzida para todo o mundo. Mostra que, no Brasil, poucos se preocupam com o destino dos índios, seja no Acre, no Mato Grosso ou mesmo no Ceará, onde estou hoje. Uma frente de expansão agrícola silenciosa, apoiada em financiamentos oficiais, avança sorrateiramente sobre as terras agricultáveis dos indígenas. Nas costas cearenses, elas vão se transformando em empreendimentos imobiliários.
Essa tem sido a nossa rotina desde que Colombo e Cabral passaram por aqui. Foram invasões e destruição de aldeamentos com a apropriação de territórios e a alienação dos cidadãos. A proteção vem praticamente só mesmo das condições precárias do solo e do clima na costa, no sertão ou na floresta. Somente a natureza consegue reter a avidez dos conquistadores e formar bolsões de resistência, pelo menos cultural .
No interior do Ceará a seca começa a reproduzir um desastre histórico, que seria pior se não fosse a macaxeira para matar a fome, o jegue para o transporte e o gibão para entrar na caatinga. O cenário descrito por Luiz Gonzaga pouco mudou. Não se sabe por aqui o nome do presidente da República, e alguns nem o do governador do estado. Paradoxalmente e com raríssimas exceções, fomos e somos dirigidos por descendentes estrangeiros, alguns até mesmo com dupla nacionalidade, como d. Marisa. Nenhum índio chegou ao Poder. Na Colônia, no Império e até na República eles estão lá. Geisel (alemão), Medici (italiano), Kubitschek(polonês), Roussef (búlgara), Temer(sírio/libanês). Todos querendo transformar o Brasil numa Nação multicultural respeitável, mas sem se ocupar com seriedade da pobreza e, sobretudo, com os nativos, senão como atração turística.
Na passagem do ano, o Presidente Temer anunciou, em discurso à Nação, feitos de 2016 enfatizando que não se esquecera das questões sociais. Citou várias medidas. “Mostramos que, ao lado da responsabilidade fiscal, estamos também levando adiante a responsabilidade social” .
No meio de notícias sobre iniciativas de governo, cobranças da sociedade e exaltação às vulgaridades, não houve, entretanto, um parágrafo dedicado ao homem assolado pela estiagem no sertão. Sobre os índios menos ainda: nem lembrança. Em que pese a história oficial, Colombo e Cabral não respeitaram nem o que eles mesmos chamaram de “a docilidade dos nativos”, e os subornaram logo na chegada. De tal modo se deu que os pataxós, na Bahia, só recentemente conquistaram a tal “autonomia relativa”. Nunca antes mereceram a atenção como nações, como representações coletivas ou entidades sociais. Embora a Constituição os incorporem à cidadania brasileira, os governos e a própria população os tratam com indiferença. Passaram pela colonização, pela cristianização, pelo permissivo SPI e pela Funai, que cismou em civilizar os indígenas. Tem deficiência de tudo: saúde, educação, alimentos, delimitação das suas terras, etc.. E assim, enquanto ninguém define o que é melhor para o índio, nem lhes dá o direito de fazê-lo, resta para eles uma espécie de “restos a pagar” do orçamento federal.
Relatório técnico do Conselho Indigenista (CIMI) revela o alto grau de deficiência alimentar e nutricional dos povos guarani e kaiowá, sobre tudo entre as crianças. Nas esferas oficiais ninguém comenta. Depois, assusta-se ao ler no New York Times sobre o índice de suicídio entre os indígenas brasileiros. No Paraná, terra da fartura, lá na região de Chapecó, cujo acidente com os jogadores de futebol tanto consternou a sociedade, existem grupos com sérias dificuldades de subsistência. O estádio do Chapecoense, chamado pelo prefeito de “Pequena Aldeia de Codó”, homenageia o índio Codó, de história controvertida, que intermediou a apropriação das terras dos kaingangs, hoje na miséria. O futebol ajuda a enterrar o drama. A fabulosa PEC do Gasto Fiscal cortou tudo que inflava o orçamento, não deixando claro quanto e o que vai sobrar para os índios. Eles são apenas 800 mil. Já foram 5 milhões. Lentamente vão desaparecendo como povos fundadores que, hoje, representam 0,4% da população brasileira. São tratados como inimigos da agricultura, que avança inapelavelmente sobre suas terras. No Congresso uma bancada latifundiária retarda sistematicamente os projetos de interesse dos indígenas que , para se defender, contam com três ou quatro porta-vozes: nenhuma indígena.
"Um mundo possível”, como diz o sociólogo Boaventura Santos, é pouco. O tratamento dos índios como minorias, menos ainda. Eles precisam de tudo, inclusive do sossego que os latifundiários, o governo , fotógrafos e sertanistas não lhes oferecem nem na mata, nem no Congresso. São associações de fazendeiros, a “bancada ruralista” e até o Movimento dos Sem Terra, todos contra os índios. A responsabilidade social leva o governo a tolerar as minorias sociais, e a fazer o jogo da maioria parlamentar. É uma maldade com os índios. A “Pequena Aldeia de Codó” é apenas o símbolo de uma frente de desenvolvimento para o Oeste, que isola a pobreza e continua a avançar sobre as terras indígenas. É constrangedora a abordagem, mas impossível ignorá-la.
*Jornalista, professor, doutor em história cultural
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