Por Delano Câmara
A secretária vem me dizer que há uma senhora querendo falar comigo ao telefone, e se diz corretora. “O senhor atende?” – insiste a mocinha.
Penso um pouco. Está bem, uma corretora. O que será que ela vende? Olho um pouco em volta de mim, rebusco coisas e sonhos de consumo que possa ter inadvertidamente guardado nos escaninhos do cérebro e acabo concluindo que não ando mesmo precisando de nada. Talvez de algumas ilusões da mocidade, alguns sonhos nos quais me perdi ao longo das minhas noites, de algumas recordações que possam me ter sido doces e talvez até de pessoas que amei e que nunca mais vi. Mas isso corretores não vendem, e mesmo que vendessem deles eu não ousaria comprar pois ilusões, sonhos e lembranças só vingam mesmo e só se alastram na alma de quem tais coisas sentiu, e gratuitamente. Comprá-las assim, sem sequer as ter vivido , é sinal de tola idiotice pois serão tão inúteis como um sofisticado aparelho de som na casa de quem nada escuta.
A secretária me desperta de tão atabalhoados pensamentos e repete: “O senhor atende?” Digo quem sim, e distraídamente escuto a voz que vem do outro lado da linha:
- “Bom dia, senhor Delano. Olha, estamos fazendo uma promoção de jazigos perpétuos no cemitério parque. O senhor já pensou em adquirir o seu ou o da sua família?”
Quase caio da cadeira para trás. Eu, que há minutos estava justamente pensando como a vida é boa enquanto olhava pela janela do escritório para contemplar o lindo dia que hoje está fazendo, apesar da nortada fria que vem do lado da praia. Eu, que de forma sorrateira até acabava de conferir, uma a uma, as ginasianas que diariamente desfilam faceiras pela rua perto do meu escritório após as aulas e notava - meu Deus! - como estão ficando belas. Eu, enfim, que secretamente há pouco agradecia a Ele por estar vivo, e vem uma corretora me falar e morte – ora bolas!
Acho que só não desliguei o telefone porque ainda me considero um homem educado e porque, afinal, é o trabalho dela. De mais a mais, ela me ofereceu um jazigo, não um túmulo, uma cova, meus últimos sete palmos, enfim, esse palavreado todo que quer dizer a mesma coisa, mas que me assusta. Já jazigo não. É como dizer a alguém que seu parente querido passou desta para melhor, ao invés de informar que o sujeito bateu as botas, abotoou o paletó, coisas assim. É tudo a mesma coisa, mas induvidosamente ouvir “morreu” é bem mais doloroso do que simplesmente escutar “enfim, descansou”.
Não, não tenho nem jazigo perpétuo, nem passageiro, e nem pretendo comprar um, e tanto, e educadamente, respondo à corretora. Mas ela insiste:
- “Está bem, senhor Delano, mas pelo menos responda para a pesquisa que estamos fazendo e para a nossa estatística. Porque não, se a morte é inevitável? Porque não, se o senhor não tem e vai precisar de um?”
Peço licença, desejo um bom dia à minha aziaga e agourenta interlocutora e desligo o telefone, sem qualquer remorso.
Ora, nos dias de hoje e nos quais vivemos, porque vou comprar um jazigo se nem sei se vou ocupá-lo? De repente um sujeito me seqüestra, pede resgate, e se ninguém der um centavo por mim porque o camarada vai ficar na obrigação de devolver meu corpo se já terei dado um trabalhão danado, e por nada? E se morro afogado, se caio de avião, se me dão por desaparecido, de que vai me servir um jazigo? E se tudo isto não basta, vá lá que daqui há alguns anos eu comece a ponderar, no auge da minha velhice, o ridículo do meu corpo, com uma dor aqui, uma chaga incurável ali, um descompasso profundo nas minhas funções vitais e chegue à conclusão que o melhor mesmo é mandar cremar essa porcaria toda e espalhar as cinzas no mar, que tanto amei? Jazigo então, pra quê?
E se nada disto ocorrer, afinal tenho mulher, filhos, amigos, enfim, pessoas que ajudei, que amei e que certamente não vão querer me ver insepulto. Afinal, se as preocupações para depois da minha morte não serão sabidamente minhas, porque vou, desde agora, dar tratos que tais à minha já fatigada cabeça com problemas que não me dirão respeito?
E se falham a mulher, os filhos, os amigos, as pessoas que amei, enfim, se todos descobrem que deliberadamente desliguei o telefone da corretora só para deixar essa aporrinhação para eles e eles, só de vingança, saem do velório de fininho e não assumem a responsabilidade do enterro? Bem, aí há o poder público, as autoridades, os políticos que sempre tiram partido disto, no que acabo concluindo que, de uma forma ou de outra, comprando ou não o tal jazigo vou ter também o meu lugar à sombra, ou melhor, à imensa escuridão de todos os mortos, onde tudo é exatamente a mesma coisa.
Sinto muito, minha cara corretora, por não lhe dizer antes porque não aceito sua oferta, o que faço agora para a sua pesquisa e para a sua estatística. Espero também que você me perdoe pela recusa e que queira aceitar de bom grado – já que me estragou o dia – as minhas sinceramente gélidas, soturnas, horripilantes e não menos fúnebres saudações.