Por Erlon José Paschoal*
Neste momento atual do país, onde reina a sensação de destruição das instituições públicas e de fim das conquistas democráticas obtidas através de muita luta e envolvimento coletivo, volta-se a pensar em novas possibilidades de idealizar e projetar um futuro que faça face à realidade complexa das próximas décadas. Afinal seremos em breve 9 bilhões de pessoas neste planeta onde ainda predomina a falta de emprego, a carência alimentar e o desmanche das estruturas estatais de apoio ao cidadão. Será que precisamos todos construir coletivamente uma utopia? Será que seria preciso pensar, por exemplo, em uma “renda mínima universal” (universal basic income) como muitos defendem hoje em vários países?
Vários pensadores afirmam, aliás, que a função da utopia é estimular uma visão crítica da realidade. E não apenas isso. Seria também um instrumento de transformação social que visa a “desmascarar a falsidade da ideologia estabelecida” e provocar um movimento dos indivíduos em busca de uma sociedade mais justa.
O pensamento utópico seria então uma espécie de visão libertária, de projeção de possibilidades relacionadas à construção de uma sociedade mais igualitária e mais feliz? Como sabemos, utopia, etimologicamente, significa o “não lugar”, aquilo que não existe em lugar algum ou, segundo Ernst Bloch, o que “ainda não” (noch nicht) existe, mas que pode ser vislumbrado, antevisto por aqueles que intuem ou desejam concretamente um mundo melhor. O escritor alemão referia-se a uma utopia concreta, proativa, que projeta para o futuro alternativas reais forjadas no presente.
Não se trata de ficar à espera do paraíso, mas de identificar as “mentiras do presente” e descobrir “as verdades possíveis” para além de tudo o que existe hoje. É preciso constatar que não vivemos no melhor dos mundos e que “outras verdades” nos espreitam mais adiante; vislumbrando-as poderemos alargar o horizonte de nossas vidas. Theodor Adorno, porém, discordando de Bloch, lamentou que, aparentemente, as pessoas tivessem perdido a capacidade de imaginar a totalidade como algo que pudesse ser completamente modificado. E por isso elaborou suas “mínimas morais” para estimular no homem a solidariedade, a compaixão, a compreensão do Outro e o rompimento com o mundo da indiferença, da “frieza burguesa” e do descaso pelo destino dos semelhantes.
Bloch entrevia as inúmeras possibilidades presentes no pensar humano como potência e como promessa. Para ele, a arte conteria então os anseios de um mundo melhor, projetando relações comunitárias, pautadas por valores éticos universais. A arte, sobretudo a música, é capaz de relacionar a memória do que passou com aquilo que virá, com o imprevisível e o imprevisto, sendo, ao mesmo tempo, um lamento e uma esperança, um refúgio e um protesto, a dinâmica do movimento e a intuição do porvir. A música seria uma espécie de sismógrafo, refletindo frestas sob a superfície social, expressando desejos de transformação e convidando à esperança.
Não é coincidência, portanto, que a arte hoje, bem mais que as ideologias políticas, tenha se tornado o espaço catalisador para onde confluem forças que apontam para um mundo a ser desvendado. Para Herbert Marcuse, por exemplo, as artes e a cultura em geral manifestam com clareza um instinto de felicidade e de liberdade, fundamental no inconsciente humano. Ele imaginou a partir daí uma “sociedade não repressiva, sem o trabalho alienado, aberta ao lazer e à sexualidade”.
Resta saber, contudo, como este instinto humano, que embasa o pensamento utópico, pode conduzir efetivamente o conjunto da sociedade a antever outras verdades e a inventar um futuro. Mas de qualquer modo fica a certeza de que o artista e a arte, em sua dimensão atual, têm um papel importante a desempenhar nesses tempos pós-modernos, em que as criações coletivas e as individuais, a realidade e a ficção se mesclam e muitas vezes se confundem.
O projeto artístico internacional Utopia Station (www.e-flux.com), por exemplo, inicia seu manifesto afirmando que estamos na iminência de viver de uma maneira nova as relações entre arte e práticas sociais. Compõe-se de mais de trezentos artistas que organizam e trocam ideias e informações virtuais e presenciais tentando oferecer um conjunto de opções, uma ferramenta, uma estrada, um caminho da Utopia, ou de uma vida com oportunidades iguais para todos.
Neste momento histórico em que a revolução digital democratizou as relações interpessoais em níveis jamais imaginados, em que a troca de conhecimentos é ilimitada, ao contrário da propriedade privada e do capital que são limitados, torna-se possível elaborar coletivamente mundos melhores para todos. Um autor contemporâneo, Peter Frase, propõe quatro alternativas de futuro apoiada em dois conceitos: riqueza e distribuição. Assim seriam elas: 1) muita riqueza bem distribuída; 2) pouca riqueza bem distribuída; 3) muita riqueza mal distribuída, e 4) pouca riqueza mal distribuída.
Em resumo: o futuro está em nossas mãos.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, escritor e tradutor de alemão.