Por Erlon José Paschoal*
Ao que tudo indica, vivemos num país virtual, onde o que parece ser não é, e o que é pode muitas vezes não ter uma boa aparência. Nunca tivemos um presidente tão avesso aos problemas sociais mais agudos, que afligem a vida da maioria dos brasileiros e, ao mesmo tempo, tão distante em sua irônica superioridade intelectual mesóclica e golpista em sua suposta onisciência. Com uma naturalidade semelhante ao sotaque nordestino das novelas globais, nossos dirigentes tentam nos convencer de que nunca estivemos tão bem e que tudo está sendo feito com as melhores das intenções: da venda indiscriminada de serviços públicos básicos aos acordos políticos espúrios abaixo de qualquer suspeita; do desmanche das conquistas democráticas às privatizações mais hediondas....tudo é mostrado pela mídia manipuladora, canalha e mau caráter como inevitável, de acordo com a cartilha dos ajustes, já que se trata “do único caminho possível”. O empenho obsessivo dos corruptos, golpistas e fraudulentos que estão conduzindo o país neste processo, impede-os de ver a triste realidade dos milhões de excluídos e de sub-emergentes que se multiplicam em progressão geométrica.
A mídia, por outro lado, continua apostando burramente na unanimidade unilateral tentando reduzir tudo à mera imagem, à mera embalagem fashion ou à mera aparência banalizada. A compreensão do mundo e do país imposta pelos enredos dos noticiários gera anomalias as mais diversas e aberrações de toda ordem vistas à exaustão em manifestações recentes regadas a prosecco e em simulacros patéticos encenados pelo tiririca fashion na cidade de São Paulo.
O show das tragédias alheias se alimenta não só das cabeças cortadas nos presídios ou das mães que tiveram seus filhos encontrados por balas perdidas, mas também de assassinatos, espancamentos, sequestros e aberrações filmadas por cinegrafistas amadores e por profissionais atentos aos furos audiencionalistas. Encurralada por uma overdose diária de meias verdades, supostas verdades, inverdades, convicções e pós- verdades espalhadas pelo jornalismo maniqueísta, torpe e mau caráter, a maioria da população se submete a interpretações equivocadas e distorcidas da realidade circundante sem muitas opções para elaborar suas próprias leituras dos fatos. Vale lembrar Millôr Fernandes que certa vez afirmou: “A imprensa brasileira sempre foi canalha. Eu acredito que se a imprensa brasileira fosse um pouco melhor poderia ter uma influência realmente maravilhosa sobre o país. Acho que uma das grandes culpadas das condições do país, mais do que as forças que o dominam politicamente, é nossa imprensa”.
Nelson Rodrigues, sempre muito atual, eternizou a figura do canalha, do cafajeste, do cínico, tão cotidianamente presente na história contemporânea de nosso país; para ele, este seria o brasileiro típico das classes abastadas e uma das referências formadoras do caráter de nosso povo. Será verdade? Sua experiência jornalística teve importância fundamental na escolha de temas sensacionalistas que, acrescidos de lirismo, ganharam força e qualidade literária. Quando vemos hoje, por exemplo, os presidentes de nosso Congresso Nacional e do país, representantes do judiciário e do executivo falando, vociferando e agindo temos a certeza de que Nelson acertou na mosca.
Enquanto isso aparecem e desaparecem as delações premiadas seletivas vazadas ou não. Ministros, secretários, presidente, juízes, governadores, prefeitos, deputados, senadores, secretários, vereadores, empresários aparecem nas listas intermináveis de nomes com as alcunhas mais risíveis e debochadas possíveis. De Botafogo a Angorá, de Santo a Cajú, de Mineirinho a Babel, de Boca Mole a Careca, estão todos lá, todos os que ocupam cargos de elevada importância nos poderes públicos brasileiros. Mesmo com os inúmeros golpes cotidianos, com os “acidentes pavorosos” e queda de avião, a farsa política canhestra instaurada com o golpeachement em 2016 continua trilhando à força seus caminhos tortuosos e nocivos ao país, à democracia e às futuras gerações, enaltecendo o obscurantismo, o desprezo pela soberania nacional e pelos pobres, a intolerância com a diversidade e o ódio indiscriminado aos diferentes.
O lawfare tupiniquim acabou criando personagens dignos de filmes de quinta categoria que seriam patéticos, grotescos e engraçados se não fosse reais e nocivos o bastante. Juízes de várias instâncias ostentam seu poder arrogante e sua vaidade mesquinha em frente a todas as câmeras. O juiz-mor, o chamado Boca de Sapo ou de João Plenário, pela semelhança física e comportamental, aquele que “está destruindo a Justiça desse país”, sai sempre em defesa de criminosos contumazes deixando todos atônitos com a inversão de valores. Enquanto defendem com unhas e dentes os comparsas de colarinho branco, criminalizam ostensivamente os movimentos sociais legítimos. Os pequenos inquisidores partidários, infames, arbitrários e fraudulentos já caíram no ridículo e o Congresso, por sua vez, virou alvo de todo tipo de chacota pela sucessão ininterrupta de escândalos que brotam todos os dias oriundos de todas as fontes. O cinismo, a desfaçatez, a hipocrisia e a bizarrice moral parecem ser então as tônicas dos vários esclarecimentos e declarações dadas pelos envolvidos.
O ar de naturalidade, com que muitas pessoas encaram tais anomalias, delações e desvios, faz que nos acostumemos com comportamentos sórdidos e cenas cotidianas hediondas, inclusive em nossa própria esfera de relacionamento. Passamos muitas vezes a achar normal que alguém de nosso círculo aja de modo indigno e vil, expresse toda a sua mesquinhez de espírito e se oriente pela máxima do vale tudo. Nesse sentido e pela complexidade da questão seria importante refletirmos sobre o que impulsiona as pessoas a agirem desse modo. Sobretudo nos dias atuais onde atitudes repletas de ódio, agressividade e preconceito nos fazem pensar em algum surto ou delírio coletivo. Hoje muitos psicopatas fazem uso das redes sociais para destilar seu ódio e sua aversão aos valores básicos da civilização.
Os desmandos, descalabros e delações nossas de cada dia devem na realidade nos impulsionar a buscar formas de contribuir ainda mais para o equilíbrio das relações sociais e para a construção de uma sociedade onde o respeito, a honestidade e a ética sejam valores praticados pela grande maioria da população. Será possível isto?
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, escritor e tradutor de alemão.
Foto da Internet, DáoquePensar.