Este ano completam-se 100 anos da Revolução Soviética de 1917. Neste breve texto, procuramos apresentar alguns aspectos que podem ajudar a entender as dificuldades de um processo de transição ao socialismo, quando considerados projetos nacionais isolados de tomada do poder, diante da força imperialista organizada em nível mundial.
Da base socioeconômica resultante da guerra revolucionária não pode emergir imediatamente uma superestrutura jurídica e política nitidamente definida. O improviso, o provisional, a contínua mutação, a instabilidade ou a inconstância são marcas passíveis de serem observadas nas tentativas de se estabelecer alguma governabilidade nos períodos iniciais da transição de um modo de produção a outro e, no caso da construção do socialismo, não poderia ser diferente. Normalmente, emerge nessas circunstâncias um regime de força que procura garantir, mesmo de forma parcial, alguma capacidade de intervenção e controle governamental.
No entanto, o rigor exige certa distinção entre as dimensões analíticas em que a instabilidade e o provisional se estabelecem nessas situações. Assim, parece interessante pensar que, num nível mais elevado de abstração, o Estado possui uma natureza instável, especialmente perceptível nas primeiras fases dos processos de transição, que se manifesta mais concretamente em formas de intervenção provisionais e muitas vezes improvisadas, tendo, portanto, uma materialização determinada pelas condições objetivas dos territórios e dos momentos em que elas se realizam.
Se é assim, a natureza instável do Estado, numa transição ao socialismo, derivaria dos traços herdados da fragmentação na estrutura de classes constituída no período anterior à crise estrutural e à guerra revolucionária (nos casos em que esta for exigida). A esse fracionamento originário se agregariam dois outros fatores fundantes: os estratos sociais emergentes, que normalmente se formam a partir da implantação dos projetos iniciais de novas formas de propriedade e de organização da produção; e a pressão externa imperialista, cujas modalidades (intervenções militares, bloqueio econômico, apoio à sabotagem e à promoção de dissidências internas etc.) corroborariam para a desintegração social. A combinação desses movimentos fragmentados, motivados por interesses difusos, internos e externos, dificultaria a formação de uma nova estratificação social. Resultariam daí as condições para certa autonomia do comando estatal, mas, ao mesmo tempo, o prolongamento do período requerido para a estabilização de uma nova superestrutura política e jurídica, ou seja, para a consolidação da ditadura do proletariado, condição para se avançar rumo ao comunismo.
Em outra dimensão, caberia lembrar que guerra, qualquer que seja, possui um caráter amplamente destrutivo.
Dependendo das condições em que pode ocorrer, uma guerra revolucionária pode atingir estágios de grande devastação, até mesmo de ruína, o que colocaria a seleção de prioridades num patamar muito avesso ao que poderia se suceder numa situação de estabilidade social. A destruição dos equipamentos públicos, por exemplo, inviabilizaria o atendimento pelas autoridades das demandas multiplicadas em situações como essas, e a maioria delas exigiria atendimento improvisado, de iniciativa local, inclusive informal, sem qualquer controle das autoridades provisórias. Da mesma forma, a possibilidade de aniquilamento, parcial ou total, das antigas unidades produtivas também requereria procedimentos imediatos para a garantia do abastecimento essencial, em condições bastante adversas, provisórias e improvisadas.
Diante disso, a leitura das experiências revolucionárias concretas ajuda a apreensão tanto da natureza instável do Estado a elas vinculadas, quanto das marcas provisionais e improvisadas da intervenção estatal de cada caso particular, considerando seus contextos históricos específicos. Conforme o que está exposto desde o início deste capítulo, em cada formação socioeconômica, esse processo inicial de tentativa de construção do socialismo ganha, portanto, uma forma específica de desenvolvimento, de acordo com seus elementos estruturais internos e com as características de sua inserção anterior no mercado mundial capitalista.
Parece ser nesse sentido que Lênin descreveu a situação russa nos momentos posteriores ao que qualificava como o período da guerra comunista. Após a expropriação da grande propriedade no campo e na cidade, resultaria na Rússia daquele instante uma estrutura socioeconômica que combinava as iniciativas socialistas de estatização da grande economia, a “economia camponesa patriarcal”, a “pequena produção mercantil”, o “capitalismo privado” e o “capitalismo de Estado”, com predomínio da produção mercantil camponesa controlada pela “pequena burguesia”.
Isso permite interpretar que condições estruturais semelhantes de fragmentação social e de informalidade na defesa de interesses tão fracionados só podem resultar numa superestrutura instável, com mandatos e formas de intervenção provisórias e improvisadas, até a solução definitiva dessas contradições surgidas no imediato pós-guerra revolucionária.
Trata-se, na verdade, de administrar contradições novas e ainda pouco definidas, que se expressam numa estrutura e numa superestrutura de interação pouco amistosa entre o coletivo, o público e o privado. O prolongamento desse processo inicial, por anos ou décadas, pode ensejar até grandes alterações na forma, proporcionando, inclusive, algum controle maior, ou alguma melhoria na capacidade de intervenção dos governantes. Porém, as transformações de fundo pressupõem ou a submissão dos interesses burgueses internos e externos a um regime cada vez mais rigoroso de controle no caminho de sua eliminação e da consolidação da transição socialista ou, ao contrário, o recrudescimento do regime de concessões internas e externas até a perda total do controle da vanguarda no poder sobre a anarquia da produção.
Aprendemos, portanto, com a Revolução de Outubro de 1917, que a etapa necessária do socialismo não decorre imediatamente da guerra revolucionária pela tomada do poder. Essa etapa precisa ser construída, inclusive pela espontaneidade da luta de classes mais geral, exigindo uma fase prévia de explicitação das contradições que culminariam numa crise sistêmica de desagregação social e de instabilidade política no interior do próprio capitalismo. Essas seriam as condições para a substituição das formas de poder corrente por formas transitórias e, portanto, instáveis de relações políticas, até que se constituíssem as condições objetivas de instauração do Estado socialista, ou da ditadura do proletariado. Esta etapa imediata pode se desenvolver entre avanços e recuos num período muito longo e evoluir em meio às iniciativas estatais voltadas para promover a coletivização da propriedade e da produção. Em frente à desestruturação produtiva e às pressões imperialistas, a vanguarda no poder se vê obrigada, também, a abrir concessões à acumulação privada, procurando ganhar forças estruturais e construir formas alternativas de legitimação. Essa situação não deriva da vontade da vanguarda no poder pós-revolucionário, ela é fruto das condições objetivas em que se desenvolvem as relações do capital e de como elas se perpetuam por muito tempo, por estarem organizadas em nível mundial.
Helder Gomes é economista e doutor em Política Social.
Não há comentários postados até o momento. Seja o primeiro!