Por Ester Abreu Vieira de Oliveira
A igreja de Muqui airosa no seu neogótico é um marco imponente na cidade.
Para o álbum da Mãe Cinica, que mamãe doou a Nica, meus olhos cresceram de desaprovação, apesar dos gritos de dor e das lágrimas de Nica, sentada na porta que dava da sala para a cozinha, pela perda de pessoa estimada, mas não menos amada por mim.
Nesse álbum presenteado – ação que reprovei como outras de desprendimento de minha mãe – havia retratos de pessoas amigas, “compadres” e ancestrais “avós, tios, primos”, vestidos com solenes roupas. Homens de bigodes e com relógios de ouro presos em corrente de ouro no bolso do colete, sentados, com o paletó semi-aberto mostrando o colete e tendo bengalas na mão. Mulheres de pé, com longos vestidos, de gola alta de renda e com mão descansada no braço da cadeira. Casais de pé, mas com a mulher semi de lado deixando ver uma saia com adornos e laços atrás dando uma certa elevação ao contorno da silueta. Às vezes crianças também se juntavam aos casais e todos de terninho e muitos sérios.
Entre esses retratos, consegui sorrateiramente retirar para mim um de meus tios e pessoas amigas de quem muito gostava durante a inauguração da primeira igreja de Muqui, onde fui batizada, crismada e fiz a primeira comunhão.
Esta igrejinha, situada na metade de uma colina, quase no sopé do morro, que, na foto do álbum de minha tia avó, Mãe Cinica, uma fileira de pessoas se haviam colocado diante dela no dia da inauguração, homens de ternos, branco ou preto, e com chapéu, e mulheres de longos vestidos, com a chegada do jovem pároco espanhol, agostiniano, Frei Pedro Domingos, foi sendo ampliada pelos lados, pela frente, para o alto para constituir a igreja Matriz de Muqui. Nós acompanhávamos o trajeto, passando por um chão poeirento de cascalhos dos concretos e passando por baixo dos paus dos andaimes sem atinar de como, anos depois, como um feio casulo guardião de uma formosa borboleta, surgiria a beleza da igreja para as gerações futuras. Se a princípio eram tábuas, andaimes, pó, poeira, essas formas deselegantes oportunizaram a transformação do templo na beleza que hoje tornou um cartão postal da cidade e do Estado.
Enquanto reformava-se o edifício sagrado e a construção crescia e as paredes se embelezavam, nós íamos às aulas de catecismos, às coroações de Maria, a todas as festividades e, diante da igreja, corríamos, brincávamos de pique e recebíamos choques elétricos em determinados postes da iluminação com os fios não muito bem cobertos. Comíamos os coquinhos das palmeiras, ao lado da escadaria que se formava, numa alegre correria para baixo e para cima.
A igreja cresceu para cima e para os lados. Elevaram-se as paredes laterais. Colocaram pisos. Construíram altares laterais e o altar central. No fundo, pelas escadas, primeiro de madeira, as crianças subiam cantando. Nas noites de maio para a coroação de Maria, as meninas, e em julho, para a coroação do Coração de Jesus, os meninos. Mas sempre aos sábados havia catecismos, corridas e risadas.
Construído o campanário, depois do coro, subíamos as escadas em construção para ver a cidade a nossos pés, sob a proteção do sacristão.
Tempos depois, construiu-se a paredinha para a comunhão. O mármore branco brilhava junto com dourados adornos. Pintaram as paredes. Pouco a pouco acima dos andaimes íamos vendo crescerem figuras no teto do altar mor. Dois italianos subindo e descendo aquele emaranhado de tábuas despertavam a nossa curiosidade. Por fim apareceu um lindo João Batista grandioso com lindos pés cobertos pela água. (Emoção grande me proporcionou um altar na entrada à direita do Vaticano análogo ao de Muqui, com as cores verdes e um João Batista dentro de um riozinho).
O branco e brilhante mármore do altar contrastava com as gigantes e coloridas figuras da nave. O coro terminou. Dele saíam os GLÓRIAS mais formosos e vibrantes nos dias de missas solenes, principalmente em Natal e no domingo da Ressurreição. Sempre depois dele as escadas nos levavam à torre onde os sinos que o Senhor Antenor tocava vibrante em dias de festas ou em suaves dobrões quando algum muquiense morria.
Seu Antenor também era o guardião da biblioteca da igreja. A única da cidade e onde podia semanalmente apanhar emprestados livros que ele me direcionava, pois sempre já os tinha lido e, segundo ele, eram adequados a uma mocinha. Ele admirava muito minha mãe que era piedosa, catequista, da irmandade do Coração de Jesus, organizadora e fundadora da Cruzadinha e sempre ativa.
O crescimento da igreja dependeu da energia do Frei Pedro (comentavam os familiares e amigos que era arquiteto ou talvez, conhecesse essa ciência). O afã dos freis, que a ele ajudavam, como o Frei Laurentino, no empenho de conseguir auxílio como doações para leilões, cujas rendas revertiam para a edificação da nova matriz, era frutífero. Nas visitas às famílias muquienses recebiam doações diversas: comidas, objetos variados, animais, galinha, gado, sacas de café, mas tudo era levado a leilão cujo produto auxiliava o crescimento da igreja e constituía a alegria nos dias de festa. Os muquisenses forneceram o auxílio monetário para que artistas e artífices realizassem a construção e a embelezassem, mas o bom gosto do pároco espanhol embebido das belezas das construções de sua terra foi o basilar da beleza da matriz São João de Muqui.
E minha foto? o que tem a ver com todas essas lembranças?
Um dia — muitos anos depois de eu ter guardado o retrato da inauguração da igreja, que aumentou a primitiva capela — minha mãe foi à minha casa e pediu-me o retrato emprestado para levá-lo ao Pe. Pedro que gostaria de mandar fazer, em Campos, uma pintura histórica com a réplica das três construções: capelas, igrejinha e a atual matriz. E foi feito esse desenho com uma interpretação da pintora, e não como era na realidade. Esse quadro, um dia, eu vi numa parede da casa paroquial. Mas não sei onde agora se encontra o meu original retrato em preto e branco. Infelizmente o meu empréstimo teve o fim de outros: sem volta. Para mim a “réplica” não condiz com a imagem que minha memória reteve, pois não havia uma fila de senhoras de vestidos longos, chapéus bonitos de abas largas, homens de ternos e com chapéu de feltro, um caminhozinho numa colina, numa semi-linha curva...