André Ricardo Valle Vasco Pereira*
Em 1983, foi lançado o filme Jogos de Guerra, no qual o personagem principal, um adolescente, acaba acessando a máquina que controlava o sistema de mísseis atômicos dos EUA. O equipamento havia sido treinado para se tornar independente do comando humano com base no aprendizado que obtinha a partir de jogos. Um deles era uma simulação bem realista de um conflito termonuclear. Sem saber do que se tratava, o garoto convidou o computador a jogar neste cenário e acabou desencadeando um ataque real à URSS. No auge da crise, ele pediu para brincar de jogo da velha com o equipamento.
Caso os participantes sejam competentes, o jogo da velha resulta sempre em empate. Quem é convidado a entrar não consegue vencer, por mais que insista. O computador entendeu o recado e o aplicou ao conflito armado, concluindo que o ataque levaria a uma derrota. Assim, quando se chama alguém para um jogo deste tipo, ela fica impossibilitada de vencer, cai numa armadilha. No caso do filme, para o bem. Mas também pode ser para o mal.
Sergio Moro acabou de apresentar sua sentença no processo contra Lula sobre o Triplex. Ela foi elaborada de tal forma que o está atraindo para uma armadilha da qual ele não pode sair e não pode vencer. Como?
Condenado por Moro, Lula irá recorrer ao Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF4). Os membros da turma que trata dos casos de Moro já passaram a ser pressionados. Seus perfis estão publicados na imprensa. Em uma matéria do portal G1, de 13 de julho, já se cobrou do presidente da corte o prazo para uma decisão e ele sinalizou para agosto do ano que vem, que é o mesmo limite para o registro de candidaturas. Se o TRF4 confirmar a condenação, Lula não poderá disputar.
O resultado disso é que o debate político passa a ser cada vez mais pautado pelas estratégias dos atores no campo jurídico. Por exemplo, o discurso de Lula no qual fez firula, dizendo que seria melhor que o prendessem senão ele poderia prendê-los, foi uma clara manobra retórica. Moro, porém, o usou na audiência e na sentença como forma de se vitimizar. Poderia até ter mandado prender o ex-presidente, pois suas “ameaças” significariam uma interferência no trabalho da Justiça.
A forma como o caso de Lula está sendo conduzida no plano jurídico, portanto, não é técnica. Há cascas de banana que estão sendo jogadas e que podem ser usadas para variadas desculpas, como prisão temporária, aceleração do processo ou intensificação de penas. Isto significa que Lula, o PT e seus aliados estão sob vigilância. Qualquer fala, qualquer ato, poderá ser usado em todos os processos, tendo em vista que há outros tramitando. Moro foi malandro em incluir na sentença as supostas "ameaças", que foram negadas por Lula na audiência como "força de expressão". Qualquer pessoa que use do bom senso aceitaria a explicação, pois é isso mesmo. Caso venha a ser eleito, não só Lula não poderia prender os operadores da Lava Jato como pegaria muito mal qualquer tipo de tentativa de interferência, rapidamente denunciada pela máquina de propaganda em funcionamento.
No fundo, Lula, o PT e os aliados passaram a ser alvos. Seus telefones e emails estão grampeados. A qualquer momento do processo que levará à decisão do TRF4, vazamentos podem ocorrer. Os membros da turma estão sendo pressionados pela imprensa e pela direita, mas, se o campo progressista falar qualquer coisa sobre eles, isso será interpretado como interferência. Ou seja, Lula caiu numa armadilha e está se afundando nela. Foi chamado para o jogo da velha e não tem como vencer, pois perdeu a liberdade de fala, o que leva a um sério questionamento sobre a qualidade da democracia na qual estamos vivendo. Se um ex-presidente, que se coloca como candidato, se vê obrigado a se policiar e aos aliados, pisando em ovos, enquanto os adversários podem tripudiar com tranquilidade, o debate fica cerceado.
Em 1964, Juscelino Kubitschek (PSD) era senador por Goiás e pré-candidato à presidência na eleição de 3 de outubro de 1965. Quando houve o golpe, ele negociou a eleição indireta com Castelo Branco e indicou o seu vice. Afinal, os militares estariam apenas afastando o perigo de uma “República Sindicalista”, eliminando a esquerda. Só que a extrema direita militar desejava sua cassação a qualquer custo, pois a saída forçada de Brizola aumentava suas chances no pleito. Só que um JK presidente poderia levar a uma ampla anistia, o que ele já havia feito antes, e desfazer todos os atos dos golpistas.
Da mesma forma que o atual projeto vencedor, os militares não poderiam se dar ao luxo de ter suas medidas revertidas e responderem pelos seus atos. Assim, JK foi acusado de ter um apartamento em Ipanema, que teria sido fruto de corrupção. Abriram um IPM e não provaram nada. O prazo estava acabando e o ex-presidente foi cassado com base numa acusação genérica de corrupção, sem provas. Mais tarde, as lideranças prejudicadas – ele, Jango e Lacerda - foram se juntar em uma Frente Ampla, mas o timing havia sido perdido e não houve reversão do quadro. Hoje é Lula que cai na armadilha da qual não pode sair. Seus adversários acham que estão bem, mas podem também virar alvos, enquanto um nome mais palatável para o projeto vencedor vai sendo articulado nos bastidores. É assim que o autoritarismo sem golpe aberto vai funcionando.
*Professor do Departamento de História/UFES
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