Por Eduardo Selga
Da primeira vez em que me deparei com ele, na travessa de acesso à minha casa, o sobressalto foi tão grande que me assustou a possibilidade de eu ter sido visivelmente indelicado. Os outros moradores da rua talvez me repreendessem à boca miúda ou até com os olhos nos meus olhos como quem não quisessem nada, muito embora, se de fato acontecesse, não fosse justo comigo, afinal eu era parte da comunidade de Itararé há pouco menos de um mês e sequer ouvira falar dele. Parecia mesmo (depois tive certeza disso) que ele era meio invisível a todos. Não à toa, somente uns dois ou três se lembravam de seu nome de batismo, apesar de nascido ali mesmo há uns vinte anos ou pouco mais. Todos o chamavam Pateta, apelido que inicialmente considerei cruel, mas aos poucos, com a convivência de quem apenas observa à distância, percebi: o peso adjetivo, que certamente um dia houve, esvaíra-se por completo e transformara-se somente num substantivo vazio. E, antes que alguém pergunte, sem nenhuma relação com o personagem da Disney. Pateta equivalia a qualquer Pedro, José, Carlos...
Ainda hoje —e ele mora quase defronte a mim— não sei com exatidão qual a enfermidade neurológica o persegue e o desfigura. No entanto, por conhecer intimamente alguém que desde a infância traz consigo a epilepsia, e sei que o pouco que isso lhe incomoda já é o bastante, fico a pensar o quanto a moléstia de Pateta, que interfere drasticamente em sua postura corporal, músculos do rosto e na fala, deve ser um estorvo para ele e a família. Não, tentemos a sinceridade: é um embuste meu, pois digo isso meio da boca para fora, na medida em que não consigo de fato imaginar o tamanho da fratura neurológica. E nem sei se quero.
Ele anda lentamente, a cabeça virada quase completamente para cima, o que provoca uma curva mais acentuada na base da coluna vertebral. É como se houvesse mão invisível puxando sua nuca para baixo de modo a suspender a cabeça, e por causa dessa inclinação os olhos precisam se esforçar muito para enxergar por onde o corpo se encaminha.
No entanto, não é sempre que ele se encontra nesse estado. Isso ocorre como efeito colateral de uns tantos remédios que ele ingere para aliviar as dores causadas pelos neurônios avariados e diminuir o volume das vozes de parentes ancestrais, que existiram na Terra muitíssimo antes de nalgum canto do universo invisível o nascimento de Pateta ser planejado. Antes, inclusive, de a cidade de Vitória ser pouco mais que ilha e mato, quando o bairro de Itararé evidentemente não existia no horizonte de possibilidades e era, de um lado, apenas espaço alagado; do outro, maciço rochoso.
Os efeitos colaterais, a monstruosidade física, ele os minimiza consumindo cigarros de maconha. Quase charutos, na verdade. É possível acompanhar, durante as tragadas à luz do sol ou da lua, seu corpo e pescoço distensionando aos poucos e ficando quase completamente desamarrotado. Se não usa o cigarro com maior constância é porque há um grande inconveniente: nesses casos as vozes ancestrais voltam a ocupar espaço dentro de sua cabeça. Ele diz ouvir gritos terríveis de sofrimento, chicotes rasgando o ar, murmúrios de convés, últimos suspiros de corpos flechados em combate, camas gemendo, pragas ditas sob temporais de arrasar plantações, o barulho de ossos durante a crise convulsiva de alguém atacado pela malária, canhonaços dos franceses na baía de Vitória na tentativa de dominar a vila, mulheres em gritos de horror por sentirem dentro de si a invasão sexual. Sobretudo, ele diz ouvir uma falação terrível, como quisessem as vozes do passado influenciar seu momento presente.
É por causa de tantas vozes que ele por vezes escreve febrilmente. Compõe raps e com eles presenteia os raros amigos, guarda em inúmeras gavetas, joga pela janela para que o vento leve embora, enrola outros cigarros de maconha. Quem conhece o estilo, garante: Pateta é um dom, um MC desperdiçado.
Acredito. Apenas acho que vozes do passado não se devem menosprezar. Talvez tenham algo de fato importante a dizer. Mas ele não se incomoda com isso: apenas as escreve em forma de raps e descarta das mais variadas maneiras.
Assustei-me, eu dizia no início. Procurei disfarçar minha atitude politicamente incorreta, mesmo sendo mau ator para esses papéis sociais. No entanto, sem que eu esperasse, ao invés de simplesmente passar por mim ele se aproximou, cabeça muito voltada para cima, e me disse entredentes, a mão estendida para cumprimentar-me.
— Bom dia, senhor cronista. Também não é para esse tamanho todo de susto, vamos combinar. O que os outros vão dizer, não é verdade?
Como ele sabia de minha atividade escriba, ainda hoje ignoro. Na verdade, não procurei saber. Teriam sido as vozes? Não... seria dar a mim mesmo excessiva importância.
Mas eu dizia do cumprimento. Ele não se concretizou. Logo que Pateta estendeu a mão aproximou-se de nós uma garotinha, no máximo dez anos de idade, virou-se para ele, despreocupada da opinião alheia. Fez uma pergunta sorridente, do século XX, que me inquietou imenso não sei exatamente o porquê. Ou até sei, mas em certos momentos é melhor fazer-se desentendido para si próprio.
— Oi, Pateta! Vamos brincar de amarelinha?
A foto obtida pelo autor eme:
http://maesbrasileiras.com.br/blogagem-coletiva-como-era-ser-crianca-na-minha-infancia/
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