Por Erlon José Paschoal*
Vivemos um momento muito difícil na História do país. De uma hora para outra o país foi transformado em uma República de patifes, canalhas, bandidos, pequenos inquisidores fraudulentos e vigaristas, na qual se instaurou um vale tudo sórdido e retrógrado. O desmanche dos direitos sociais, da economia, da ética e dos valores humanos básicos para a convivência social saudável, tornou-se o carro-chefe de um governo formado por quadrilhas de bandidos, como jamais se imaginava que existissem nas classes dirigentes....Ou será que sempre fomos assim e não sabíamos? Ou será que o golpe baixo e sujo apenas escancarou o que estava oculto, acordou o gigante adormecido da corrupção, do jeitinho hediondo, da patifaria, do cinismo e da hipocrisia deslavada? Sem dúvida é algo a ser devidamente estudado pelos especialistas, pois somente tomando consciência destas anomalias é que podemos evoluir e construir uma sociedade mais civilizada e igualitária.
Contudo sempre soubemos que por aqui, infelizmente, predominam as mutretas, as trapaças e as falcatruas, os crimes impunes e a injustiça social, a miséria degradante e a riqueza ostensiva, a infame distribuição de renda e os desvios escorchantes do dinheiro público, o descaso cínico e a compaixão hipócrita de nossas autoridades, tudo temperado com muito céu azul, mar e sol, muita tevê, muita descontração, muito humor e muitas bundas balançando. Sobretudo neste último ano cheio de novidades hediondas como o fim da CLT, o congelamento dos investimentos públicos, os julgamentos parciais, arbitrários, fraudulentos e ditatoriais de líderes da oposição; ano protagonizado pelos Mineirinhos, Primos, Botafogos, Angorás, pela cobertura em Salvador, pela compra no atacado de deputados para “salvar” o rato-chefe, pelo vírus da desempregabilidade, pelas difamações e pós-verdades propagadas pela mídia torpe e mau caráter e pelas disputas entre quadrilhas organizadas.... E por muita irresponsabilidade também. Enfim é um momento em que repensar os próprios pontos fracos é sinal de sensatez e de maturidade. Afinal, vivemos num país onde ironicamente o maior ladrão é o juiz.
Mas aí é que está. Quem sabe, seja isso o que mais nos falta: responsabilidade. Será que se trata de uma noção básica para se aprender a viver pacífica e harmoniosamente em sociedade? Ou não passa de resquícios de algum sermão moralista ressurgindo em nossa memória? Seria possível criar uma sociedade mais justa e mais humana sem assumir responsabilidades? E, o mais importante: aprender a ser responsável tem de ser necessariamente algo doloroso, penoso? Ou pode ser prazeroso e gratificante? O teatrólogo e escritor alemão Paul Schallück (1922-1976), numa de suas crônicas levantou as seguintes questões a respeito da importância deste conceito numa sociedade verdadeiramente democrática:
“Sem responsabilidade pouca contribuição daremos ao mundo em que vivemos. Algum dia, cada um de nós tem de assumir qualquer tipo de responsabilidade ou sentir-se responsável por alguma coisa qualquer, ainda que seja apenas por si mesmo. Mas o que significa de fato, assumir ou ter responsabilidade? Sentir-se conscientemente responsável? O que significa responsabilidade ou senso de responsabilidade ?
Se uma pessoa se ajusta às normas sociais, dizemos então que ela se comporta de maneira responsável. Mas por vezes quando ela se rebela, dizemos também que ela agiu com senso de responsabilidade. Quando e onde aprendemos pela primeira vez, que existe algo chamado ‘responsabilidade’ ? Na família, na escola, no trabalho? De que maneira os pais, professores e patrões pensam que estão transmitindo a noção de responsabilidade? Como eles realmente ensinam aos seus próximos o senso de responsabilidade? Que ideia afinal todos nós fazemos disso? E de quais fatos e concepções depende o nosso senso de responsabilidade? Sabemos muito pouco a respeito. E além de sabermos pouco, quase não refletimos sobre este conceito fundamental sem o qual não se pode viver de maneira democrática . Mesmo assim, tentamos viver e agir de acordo com seus parâmetros.
Na linguagem cotidiana entendemos ‘responsabilidade’ ou ‘senso de responsabilidade’ como sinônimo de ‘credibilidade’, ‘cumprimento do dever’, ‘escrupulosidade’. Mas isto não expressa todo o sentido do conceito. A linguagem jurídica, ao considerar a responsabilidade, refere-se à imputabilidade psicológica de uma pessoa, à autoria de um ato ou de uma ação. Ela pode então ser responsabilizada por tudo o que fizer. Numa ordem hierárquica, ou seja, numa sociedade claramente estruturada de cima para baixo, a responsabilidade equivale à autoridade e ao poder de decisão. A responsabilidade moral cabe sempre a quem ordena e não a quem executa.
A ética contemporânea, contudo, ao considerar o conceito ‘responsabilidade’, refere-se sempre ao relacionamento com o próximo. Assim, o senso de responsabilidade consiste na consciência de ser obrigado a responder moralmente pelas consequências previsíveis e imprevisíveis dos próprios atos. Como quer que se defina este conceito, basta menciona-lo para despertar nas pessoas o medo e o sentimento de culpa. A causa disto reside na educação a que todos nós em maior ou menor grau fomos submetidos. Geralmente repreendemos e obrigamos a criança a demonstrar o seu senso de responsabilidade, mas quase nunca a elogiamos por ter se comportado de maneira responsável. Desse modo, ela vai aprendendo a considerar a ‘responsabilidade’ como algo incômodo, desagradável e penoso. E até nos livrarmos de tais experiências negativas através de uma evolução posterior e de uma melhor compreensão, costumamos nos curvar irrefletidamente ou por mero interesse ante as exigências dos outros ou da sociedade, e a chamar isto então de ‘comportamento responsável’.
Por esta razão, a responsabilidade passou a ser vista em nossa educação como algo amargo e custoso. Além disso, ao invés de nos utilizarmos dela para atingir o prazer da autorrealização, cedemos frequentemente aos outros nosso direito de decidir, e preferimos assumir padrões de pensamento que nos permitam atribuir aos outros a responsabilidade pelos nossos próprios atos, sobretudo quando se trata de desvios morais.‘Responsabilidade’ e ‘senso de responsabilidade’ são conceitos fundamentais numa democracia, mas infelizmente refletimos muito pouco sobre eles.”
Sem dúvida, será sempre possível compatibilizar a aprendizagem de comportamentos “responsáveis” com a reflexão e a alegria. Afinal, trata-se de algo sério e necessário à convivência sadia entre seres humanos civilizados. A prática da arte, aliás, é uma prova feliz e sempre presente da eficácia desta combinação. O incentivo às atividades lúdicas possibilita sempre uma melhor compreensão de si mesmo e da realidade social que nos cerca.
E se pretendemos reconstruir este país após este ataque avassalador da canalhice, da intolerância e do desprezo pelos mais humildes e pelos valores morais e éticos básicos, temos de começar agora a trabalhar cotidianamente por um país mais civilizado, mais solidário, mais justo e....mais responsável.
* Gestor cultural, Diretor de Teatro, escritor e tradutor de alemão.