Eduardo Selga*
Privilégio. O significado que essa palavra carrega liga-se estreitamente aos primórdios do capitalismo, um sistema econômico e sociopolítico construído por e para determinado estrato da sociedade, motivo por que cala muito fundo nos sujeitos estabelecidos no topo da pirâmide social. E esta condição, muitas vezes, nem é tanto por terem “chegado lá” e sim por já estarem lá desde a Colônia, por meio de seus antepassados. Não se trata apenas de um vocábulo: é a razão de ser do capitalismo e o leitmotiv de uma classe dominante do ponto de vista econômico e político.
Por isso, o privilégio se constitui capital simbólico, cujo valor é imensurável na medida em que não possui a materialidade dos mais caros objetos que o dinheiro gerado a partir do lucro pode comprar. Nesse sentido, não satisfaz ter a propriedade de meios de produção: é fundamental que esse fato ocorra com poucos e, em decorrência disso, estes tenham acesso a bens imateriais que façam deles, no campo simbólico, seres especiais, senhores de educação e cultura consideradas refinadas. É como se a riqueza, ao gerar privilégios, conduzisse o sujeito a uma tradução terrena do Paraíso, lugar de poucos. Não à toa usam-se termos como “Deus Mercado”, “Deus Capital” e equivalentes.
Será que o Partido dos Trabalhadores alcançou em toda a sua dimensão o peso do capital simbólico existente no privilégio quando assumiu o comando do Estado brasileiro? Pergunto isso porque entendo ser ingênuo supor que, ao ampliar as condições de renda da classe baixa, aumentando por via de consequência seu acesso a bens imateriais, o estrato social dominante fosse aquiescer, aplaudir educadissimamente como fazem em apresentações culturais a ela destinadas, e dizer ao partido “você está muito bem, continue assim”, ao modo das “tias” do ensino fundamental para com seus alunos.
Decerto reagiriam, como de fato reagiram, pois o capital simbólico deles estava sendo distribuído com quem não pertencia à tribo, com quem não participava de um de seus mitos mais acalentados: a meritocracia. O privilégio da educação superior, por exemplo, ainda que numa porção mínima, estava escoando para outros territórios, o que é completamente inadmissível para eles, e não seria o tênue pacto social (na verdade, muito mais um acordo entre forças políticas) que teria a virtude de fazer com que a classe dominante abrisse mão de seu sagrado território mitológico.
Uma das muitas questões plantadas na raiz do golpe mal travestido de legalidade é precisamente a refundação dessa Bastilha, a retomada do simbólico, a higienização do espaço sagrado que teria sofrido conspurcação. Esse fator, mas não apenas ele, explica a virulência pela qual as forças políticas que tomaram de assalto o poder desmontaram e desmontam as possibilidades de a classe baixa continuar o processo de melhoria de suas condições de vida.
Ao fim e ao cabo, não se trata de golpe ou não golpe, e sim de luta de classes, essa expressão quase completamente revogada de certo discurso de esquerda. O nítido discernimento de que esse evento está em relevo mais que nunca me parece essencial para a resistência das forças situadas à esquerda do espectro político e, eventualmente, reassumir o Estado.
Essa “reintegração de posse” deverá ocorrer mais dia, menos dia, se ainda tivermos um Estado brasileiro de fato independente a ser dirigido. O condicionante “se” explica-se pelo fato de o capitalismo que a direita nativa defende a ferro e fogo não ter mais nada a ofertar, exceto o exponencial aumento de um processo de pauperização que, evidentemente, não afeta os sujeitos santificados do topo da pirâmide.
Ao começar outra vez, a partir de uma terra arrasada, ao reassumir o Estado possivelmente lançando mão de um novo pacto social, a esquerda, em seus mais variados tons de vermelho, precisa ater-se ao quanto pesam os símbolos da mitologia da classe dominante para ela mesma. E, por esse meio, redescobrir o Brasil.
* Mestre em Letras e Professor de Língua Portuguesa.
Nota do autor: A ilustração foi extraída do site http://guilhermeulema.blogspot.com.br.
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