Por Eduardo Selga*
O trabalho político é, necessariamente, uma elaboração, ou seja, é tarefa a ser executada pela inteligência, não pelo ímpeto. Por isso considero a metáfora que compara a política ao jogo de xadrez, embora um tanto exaurida, bastante apropriada. Os movimentos no tabuleiro precisam ocorrer em função do que o adversário provavelmente fará, e, no mundo político, enquanto as peças não são efetivamente movidas, vale o jogo de cena, do qual fazem parte recursos como o cinismo e o blefe. Esse intervalo, essa movimentação cênica, nada tem de fortuito: também é jogo.
A instalação da Ditadura Militar no Brasil foi uma variante aberta à força ao longo do curso do rio, de maneira a desviá-lo. Representou uma fratura que nunca foi satisfatoriamente calcificada. Tanto que o militarismo continua vivo e robusto entre nós, por meio das gloriosas PM’s. Com efeito, o Brasil contemporâneo, que na última década ameaçava entrar pela porta da frente no clube dos países “audíveis” (aqueles que são efetivamente ouvidos em decisões importantes), se bem observado, assemelhava-se a um aleijão que, ao caminhar, conseguia esconder sua deficiência física, oriunda de muita pancada. Ao menos caminhava, e bem.
Um dos muitos efeitos do período histórico compreendido de 1964 a 1985 foi a institucionalização do silêncio, o ter medo da sombra. Não apenas da sombra do autoritarismo, mas, se duvidasse, até do negativo de si mesmo projetado na rua ou na calçada em forma de silhueta. De modo que um povo vivaz, palavroso, quedou-se nos cantos, taciturno. Ou, por outra, demonstrava-se apenas em locais autorizados, fosse eles concretos ou simbólicos.
Esse trauma no espírito do Brasil é, acredito, uma das razões mais importantes pelas quais o povo brasileiro historicamente se posiciona avesso ao exercício político, afora em momentos específicos, como os caras-pintadas de ontem e os “patinhos amarelos” de hoje. Assim como antes era preciso autorização superior para realizar-se uma reunião com mais de duas pessoas, hoje também a sociedade, necessariamente herdeira do momento histórico que a antecedeu, parece estar à espera de uma autorização para reagir com a intensidade que a conjuntura política brasileira exige.
E quem é, hoje, a voz autorizadora junto ao meio social, num cenário em que a classe política está amplamente emudecida pela desmoralização e o discurso dos movimentos sociais de esquerda não alcança a necessária amplitude? Lula é, sem dúvida, uma voz e tanto, mas sofre resistências de setores politicamente poderosos; a direita não tem liderança nacional.
Essa voz é a grande imprensa. Ela não apenas estabelece a agenda de notícias a serem assistidas, ouvidas e lidas: é uma voz ventríloqua a pautar sujeitos da sociedade, como pudemos ver nas passeatas pela destituição da presidente da república.
A mídia em silêncio, fingindo-se morta (estando, porém, vivíssima), sem sugerir reação popular, a sociedade queda-se, em sua maioria. Está ausente a autorização, o carimbo da grande autoridade discursiva brasileira. Ela, a sociedade, reclama, porém não reivindica massiva e continuadamente; muito mais que antes, comenta as mazelas políticas, no entanto, e parafraseando Chico Buarque na música “Apesar de Você”, é como se falasse de lado e olhasse para o chão. Ou seja, reclama desmobilizadamente, postura que não leva a nenhum lugar melhor em relação a este vazio e caos que ora ocupamos. Ou melhor, no qual fomos lançados.
Será que o gigante despertado entre 2013 e 2016, quebrou os cristais da vitrine da loja e, devidamente entorpecido, voltou a dormir?
Por causa do analfabetismo político, cujos motivos estão estruturados numa educação alienante nas esferas pública e privada, e num Estado narcisista que mais se ocupa de si próprio que dos seus cidadãos, misturamos muitos conceitos importantes para entender o que se passa ao nosso entorno. Por exemplo, tornamos indistintos os conceitos de nação (a trindade povo-cultura-território) e país (apenas a delimitação geográfica), emaranhando-os num mesmo balaio. Daí resulta o equívoco capital de supor que uma nação é um ente pronto e acabado, que dispensa o contínuo processo de construção e avanço, como ocorre com o país.
Sem saber exatamente a identidade e o peso desses conceitos, boa parte de nós ignora, na prática, que as formas de avanço de uma nação devem ser decisões políticas do coletivo social, e este as delega a políticos. Nunca devem ser decisões no sentido inverso, de políticos para a sociedade, processo historicamente majoritário no Brasil.
Esse analfabetismo, aliado ao massacre que a nação sofre a partir das forças políticas que têm o dever de zelar por ela, está levando-nos a uma debandada, a uma renúncia de nós mesmos que guarda similaridades com o ditatorial silêncio do trauma de que falei anteriormente.
Uma das camadas sociais que compunham e compõem o lado direito do tabuleiro, tendo como santa padroeira a mesma argumentação moralista costumeiramente usada no Brasil contra presidentes que têm alguma preocupação social, entendeu que a mera substituição de personas (a entrada de Temer pela saída de Dilma), equivaleria à instalação de uma espécie de Estado virtuoso, que satisfizesse as “carências” das classes sociais média e alta, e para isso foi às ruas; o outro lado, alertando contra o engodo que significava um conceito de moralidade e honestidade demasiado elástico, convocou a população para greves gerais e outras mobilizações. Tanto um quanto outro lado do tabuleiro se esvaziou de representação social, exceção às parcelas militantes, que se têm esse nome não é à toa. De um lado, uma enorme e inconfessada decepção; de outro, um sentimento de impotência. Sobra, por enquanto, o vácuo político que necessariamente será ocupado, mais cedo ou mais tarde, e uma perplexidade que talvez dure mais que ele.
Em ambos os lados do jogo, um equívoco: considerar que a insatisfação social transformada em movimento, por si, é o bastante para fazer acontecer de hoje para amanhã uma transformação nacional de ponta a cabeça. Evidentemente não é bem assim, embora haja alguma verdade na máxima “política é como nuvem”: as manifestações populares, quaisquer que sejam as classes sociais envolvidas, fazem parte do jogo de xadrez, bem como as instituições políticas, e será a intensidade e o encadeamento de protestos que poderão causar abalos sísmicos para lá ou para cá. Assim, não se pode ter quanto aos protestos uma postura imediatista e utilitária, considerá-los inúteis porque tal ou qual objetivo não foi logo atingido. Tudo é processo, mas não na acelerada dinâmica da linha de montagem fordista, em que a mesma causa gera invariavelmente a mesma consequência, e sim no vagar do trabalho intelectual junto ao manual, ainda que entremeados de momentos de velocidade. É inviabilizar a torre, o bispo e o cavalo inimigos e chegar ao xeque-mate.
No ponto em que estamos não nos cabe a desistência, mais uma dose de anestesia, além das costumeiras e gratuitamente fornecidas pela grande imprensa. Se a maioria da sociedade aceitar o entorpecimento, mais uma vez 1964 terá vencido, agora sob nova gerência, uma versão civil. E teremos nos transformado numa nação fantasma, algo como uma imensa casa-grande e senzala abandonadas às teias de aranha e às ervas daninhas, muitos cômodos habitados por uma gente falecida.
* Mestre em Letras e professor de Língua Portuguesa.
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