Por Eduardo Selga
O cérebro humano não aprecia muito a dúvida. Por uma questão de sobrevivência da espécie, é preciso saber com a menor margem de erro possível o que está à nossa frente, seja do ponto de vista objetivo, seja subjetivo; estejamos falando de um touro enfurecido ou do desmonte do Estado de Direito no Brasil. Assim sendo, o cérebro prioriza as formas conhecidas, e qualquer “aparição” que esteja fora desse princípio, por desconhecida, ele tende a enquadrá-la e classificá-la dentro de padrões que tenham nome e sobrenome. Esse processo costuma fazer com que uns traços obscuros na parede, por exemplo, que não passem de uns traços obscuros na parede, se transformem aos nossos olhos numa bruxa montada em vassoura; que uma ocorrência geológica no solo de Marte seja, indubitavelmente, um rosto esculpido no planeta. A essa transferência, a essa atribuição de identidade (e de valores, por conseguinte), a ciência médica chama de pareidolia.
Não se trata apenas de uma figura na parede ou de um som vago demais que ouvimos ser passos pela casa: no meio social, bem como no exercício cotidiano e indeclinável da política, em que há muito de subjetividade, também enxergamos figuras e situações onde não existem de fato mais que rabiscos e ruídos, não apenas porque haja uma situação política ou social desagradavelmente nebulosa que precisa ser traduzida em algo conhecido: a falta de consciência de que a política é um fenômeno onipresente, definidora dos caminhos da sociedade e do individuo, nos faz enxergar Gasparzinhos nem sempre camaradas. Assim, por exemplo, políticos canastrões, e exatamente por esse motivo perigosos, conseguem nos fazer enxergá-los dentro da impossível imagem de não políticos; dizem abjurar a política (tentando confundi-la com politicagem) e, ao fazê-lo, praticam-na de modo vil.
A pareidolia é uma ferramenta da sobrevivência, no início eu lembrei. Por hipótese, imaginemos um caçador na floresta que de repente ouve um som indefinido. Pode não ser nada relevante, mas também é possível ser uma pantera movimentando-se para abocanhá-lo. Na dúvida, nosso impávido caçador entra em alerta, aguça olhos e orelhas, aponta sua espingarda de caça e atira na direção onde supõe haver o perigo. Uma, duas, várias vezes.
Saindo da floresta, no espaço da civilização também estamos em constante estado de alerta. O problema, entretanto, na polis brasileira, é que grande parcela do povo não tem olhos de enxergar importantes nuances do tumultuado momento político. Não enxergando, o que se vê à frente são borrões, imediatamente transformados em algo reconhecível. O resultado são panteras inexistentes, percepções espetacularizadas, tortas e baseadas na lógica do folhetim, em que é preciso haver um vilão absoluto para o surgimento do herói incontestável. E isso se ancora, recuando nos primórdios do Brasil, no raciocínio estimulado pelo Cristianismo, segundo o qual existem “pessoas do bem” e “pessoas do mal”.
É simplismo em demasia. Essa puerilidade é muito problemática por fazer-nos armados com bacamartes totalmente ineficazes contra um inimigo que se avizinha e se agiganta, quando não simplesmente o aplaudimos como se representasse futuro à nação: o fascismo à brasileira. Se tiver êxito em instalar-se definitivamente, decerto será tão cruel como sua matriz europeia. Enfim o sonho da classe dominante será atingido, macaquear tão bem os países ditos civilizados de modo que ela fique indiscernível, ou melhor, travestida de civilização em meio a uma sociedade seviciada?
O possível fascismo poderá vir com uma característica interessante: está sendo gestado hoje por uma classe dominante paranoica, que perdeu o senso do ridículo (aliás, nunca foi o seu ponto forte) e se comporta como aquele garotinho mimado que, tendo no futebol de rua sofrido uns gols por ser um belo perna de pau, sequestra a bola e decreta o fim do jogo.
A classe dominante pensou e articulou o recente golpe parlamentar contra a presidente por sentir necessidade de garantir seus espaços de privilégio instaurados desde o Brasil Colônia, pois os considerava sob severa ameaça. E muito dessa avaliação alia-se à paranoia, comportamento no qual frequentemente o sujeito se julga muito acima do que de fato é, tem mania de perseguição e grande dificuldade de interpretar com clareza a realidade em seu entorno. Aí começa a miragem pareidolística, difundida a mancheias como se verdade fosse.
Por exercer grande influência nos imaginários das classes média e baixa, espalham-se com rapidez os valores da nata social (nata azeda, é verdade), atravessados por um horror patológico a tudo o que seja exterior ao seu círculo higienizado, ao espaço permitido. Essa elite, ao interpretar amedrontadamente os fatos, gera uma pareidolia na qual em sua paleta de cores todas as forças políticas à esquerda do espectro político são rotuladas comunistas. Como no imaginário popular “comunista” ainda é um bicho-papão famélico por criancinhas, e que se esconde, terrivelmente sórdido, nos cantos mais inesperados, a histeria, sempre disfarçada de bom senso, faz disparar tiros para todos os lados.
Quem se fere é a sociedade. O verdadeiro animal, contudo, cresce, taludinho. E não acredito que seja pareidolia de minha parte.