Por Eduardo Selga*
É bem verdade que o Capitalismo é um camaleão com todas as cores do espectro (o vermelho, inclusive), possui grande capacidade adaptativa e de remontagem de suas fachadas de modo que sua essência animalesca permaneça intacta. No entanto, semelhante elasticidade, se ainda não chegou ao seu termo, parece estar muito próxima dele. Em função disso, a crise do sistema capitalista, que é planetária, teria tudo para fazer emergir uma nova ordem sociopolítica-econômica.
Não obstante, temos que a esclerose do atual sistema acontece enquanto outro ainda não está devidamente articulado em âmbito mundial ou nacional. Essa realidade poderá fazer com que a agonia do sistema e de muitos povos do mundo se prolongue por longo tempo, fornecendo ao Capitalismo fôlego para que ele consiga reorganizar-se minimamente, dentro de sua precariedade, mantendo-se como sistema predatório.
Ele ameaça cair de podre, mas a ausência de fruto novo e maduro no pomar poderá fazer com que ele consiga alguma réstia de vida. Mais ou menos como Temer, um lastimável arremedo de presidente da república que, mesmo não tendo condições éticas de manter-se no cargo usurpado à legítima governante do Estado brasileiro, não cai porque os possíveis nomes substitutos seriam ainda piores para os planos do grande capital.
Disso talvez resulte que ao fim do grande abalo sísmico do mundo capitalista ainda não tenhamos um mundo socialista, comunista ou anarquista, tampouco um ilusório “Capitalismo humanizado”: é perfeitamente possível observar que, na tentativa de sobreviver, a estrutura, que de tão podre perdeu boa parte de sua maleabilidade, torna enrijecidos seus músculos, a exemplo do que acontece a um corpo convulsionado. No mundo e no Brasil. Aqui e ali, inclusive entre nós, a democracia, um valor que o sistema diz ser quase santificado, em nome da sobrevivência do Capitalismo é comprometida sob as mais variadas táticas. O que nos faz chegar à conclusão de que a democracia, para o Capitalismo, só é de fato bem-vinda quando atende aos interesses do próprio sistema, não da maioria da sociedade. Esta, diga-se de passagem, não é vista como parte da estrutura que mereça ser ouvida, e sim um apêndice que deve apenas pagar o ingresso e aplaudir o show.
Algumas armas do sistema mudaram. O trabalho de inoculação de uma maneira de pensar, construir um imaginário social que corresponda aos interesses do Capitalismo, ficou mais efetivo e sofisticado desde a organização das manifestações culturais sob as regras de um engenho imaterial cuja matéria-prima é o simbólico, o arquetípico, os valores éticos e morais de um povo.
O nome desse arcabouço é indústria cultural. Ela trabalha no sentido de naturalizar princípios ideológicos do Capitalismo, como os preconceitos, o sofrimento de muitos produzido em função do lucro de uma minoria, o narcisismo hedonista. É um modo, portanto, de tornar dóceis os sujeitos, na medida em que espetaculariza todas as manifestações culturais, inclusive as populares, esvaziando suas possíveis implicações ideológicas mais imediatas ou mesmo reorientando-as.
A espetacularização, importante lembrar, atua como agente hipnótico, descontextualizador do sujeito na sociedade por meio da inércia sugerida. Importante lembrar, também, que o espetáculo a que me refiro não é no sentido literal do show: antes, é uma espécie de mecânica da grandiosidade que preside os acontecimentos públicos e sua divulgação, ao mesmo tempo em que oculta seu real conteúdo. O processo de golpe travestido de impeachment, por exemplo: o circo montado durante a votação da Câmara dos Deputados, a falta de materialidade das acusações contra a presidente, as passeatas protagonizadas por parcelas significativas da classe média e convocadas pela grande imprensa, tudo isso é demonstração de espetáculo. Quem o patrocina? Quais seus produtores executivos?
Se de um lado é verdade que o espetáculo consegue pautar as mentes e direcionar os atos de boa parte da população, também é verdadeiro que sempre existe a possibilidade de reação, necessariamente coletiva, ao estado capitalista. Quando isso se dá pela lógica do espetáculo, o resultado são atos de resistência barulhentos, coloridos, dançantes, porém inócuos politicamente. Apesar disso, as chances de ocorrer uma reação de peso efetivo para além do primeiro impacto não podem ser descartadas (e o sistema sempre trabalha com essas possibilidades), ainda que a urbe seja palco e o coletivo dos sujeitos seja mais um dos “atores políticos”.
No entanto... e se a tecnologia conseguir apropriar-se mais robustamente dos sujeitos, sequestrar-nos a nós mesmos? Não falo, em se tratando do Brasil, da influência do Jornal Nacional e das telenovelas na formação da opinião pública (frutos, respectivamente, das tecnologias da informação e do entretenimento), ou da explosão da agressividade promovida pelas redes sociais. Refiro-me a um domínio sem intermediação da reportagem ideologicamente orientada ou do passatempo.
Considerando que é socialmente comum o discurso de glorificação à tecnologia manifesta em praticamente todos os âmbitos da vida, não é impossível que o corpo humano funcione como arena dessa tecnologia, mas não com finalidades nobres, a exemplo do marca-passo, e sim para controle social. Já existem empresas em grandes países que implantam chips em seus funcionários para “facilitar” certas tarefas, como acionar botões (afinal, é demasiado trabalhoso fazer isso do modo tradicional).
Sabemos que o Estado burguês, invariavelmente a serviço do Capitalismo, é uma estrutura violenta, organizada de modo a disciplinar e conter o cidadão, em especial aquele considerado perigoso para esse mesmo Estado, que é o sujeito politicamente periférico, como os pobres, os negros, as mulheres, os não heteronormativos. Assim sendo, porque o Estado deixaria de apertar ainda mais o cabresto do cidadão, sem precisar tanto de intermediários, se a possibilidade tecnológica para isso já existe, não é mais objeto de textos ficcionais?
A esquerda, ao menos no Brasil, precisa acionar o reset, reconfigurar seu discurso à luz de um mundo que se encaminha veloz rumo à espetaculosa selvageria tecnológica em detrimento da felicidade humana. É preciso não menosprezar a força da espetacularização e entender como ela opera; considerar a possibilidade de estarmos às portas de uma sociedade de controle integrado e, sem abandonar o marxismo, reconstruirmos um sistema eficiente de comunicação com o povo.
* Mestre em Letras e Professor de Língua Portuguesa.
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