Quando historiadores não conseguem preencher as lacunas do tempo, são os escritores quem inventam a história. Sempre percebi isso, desde quando me entendi como autor, mas, principalmente, como leitor. Ainda mais ao ouvir palestra do Professor Francisco Aurélio Ribeiro, sobre a História da literatura do Espírito Santo, na disciplina homônima da Professora Renata Bomfim, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes). E, sobretudo, quando o assunto foi Vasco Fernandes Coutinho, nosso primeiro donatário.
Os historiadores não fizeram muitas concessões a Vasco Fernandes. A pecha de “fracassado” parece tê-lo acompanhado ao longo dos tempos, como se ele fosse a origem da nossa “pequenez” ante os “gigantes” que nos circundam. Primeiro donatário da Capitania do Espírito Santo, Vasco não poderia ser nada além de um fidalgo, agraciado pela Carta Foral do Rei Dom João III, no dia 07/10/1534. Esse documento é, indubitavelmente, a certidão de nascimento do povo capixaba.
Se olharmos para a História do Espírito Santo de uma forma menos tradicional, ou, melhor, menos eivada dos (pré)conceitos que nos foram aprendidos, vamos ver que esse mesmo Vasco foi o visionário de um Mundo Novo, que em muito se coadunava com a crença das Américas como o “Éden Perdido”, o paraíso nos Trópicos. O paradigma eminentemente católico não poderia render outras denominações que as da liturgia: a caravela, Glória, remetia ao próprio paraíso e o nome Espírito Santo, terceira pessoa da Trindade. Há autores que creem ter sido a chegada dos portugueses, na época de Pentecostes, em 23 de maio de 1535, proposital, uma vez que eles já sabiam o tempo de viagem de Portugal até o Brasil.
Quanto à viagem, aliás, parágrafo à parte: vi uma réplica das caravelas e fiquei horrorizado com o tamanho! Verdadeiras casquinhas de pau à deriva no mar de longo. Sei que o assunto é polêmico, mas, ainda que nenhuma colonização seja benigna, imaginar aqueles homens dentro de uma embarcação assim me faz pensar na bravura dessa gente. Imaginar, eu disse. Porque não dá para conceber uma figura feminina, como a de Ana Vaz, a mulher que topou viajar com Coutinho, trancada, literalmente, durante quatro meses. Afinal, dama que era dama não se misturava com marujo. Sobretudo uma penca de degradados.
Acho que a culpa do “fracasso” de Vasco Fernandes se deu pelo fato de ele se “barbarizar”. Uma vez instalado aqui, ele adota hábitos indígenas, como o fumo, algo malvisto. Um homem “amigado” e tabagista não teria outro caminho que não a excomunhão, a despeito da forte presença católica e de tanta igreja consagrada a Nossa Senhora (Penha, Carmo, Misericórdia, Rosário...), o que fez com que o Professor Francisco imaginasse que esse Espírito Santo tivesse uma face de mulher (a única entre o Pai e o Filho), dando origem à Vila Velha (do Espírito Santo) e à Vila Nova (do Espírito Santo), cuja denominação, Vitória, só vai, oficialmente, ser encontrada a partir de um poema de Anchieta, uns vinte anos depois, sem haver qualquer registro de batalha contra os índios. De fato, algo no mínimo estranho para quem adotou hábitos nativos.
Segundo a historiografia oficial, Vasco teria morrido na “pobreza”. Depois do que Francisco Aurélio disse, tenho cá minhas dúvidas. Podemos considerar pobreza quem opta por uma vida mais conectada com a Natureza? Vasco Filho, o “bastardo”, herda a capitania e, com sua morte, Luíza Grimaldi passa a governar o Espírito Santo, sendo a única mulher, até hoje, a ter comandado o Estado. O ouro das Gerais foi descoberto aqui, bem mais tarde, pois o ES se estendia território adentro. Em seguida, foi criada a “Barreira Verde”. Os mineiros ficaram com a riqueza. Nós, com o mar. Uma troca justa?
Vários foram os escritores que se debruçaram sobre o legado de Vasco: Renato Pacheco, com “Vilão Farto” (1991); Luiz Guilherme Santos Neves, com “O Capitão do Fim” (2001); Alvarito Mendes, com “Vasco Fernandes Coutinho” (2005); Claudio Lacchini, com “Vasco” (2009); e Jovany Sales Reis, com “O Donatário” (2014). A história dessas épocas é um prato cheio. Houve quem dissesse que o passado é uma grande criação da memória. Provoco: não seria, dadas as proporções, a História, também, um lugar de fantasia? Não vivemos a pujança, pois, fomos dela alijados ao longo dos séculos. Houve, no entanto, gente de valor por estas bandas. A mesma História que condena Vasco Fernandes Coutinho precisa olhar com mais amor para as coisas do nosso Espírito Santo.
*Advogado e Escritor