Por Eduardo Selga*
Em recente entrevista para o site www.extraclasse.org.br, o escritor Luis Fernando Veríssimo afirmou algo a que considero fundamental atermo-nos, pois é mais uma das tantas bestas-feras que se manifestam, aproveitando-se das águas turvas do atual momento político propiciado pelo golpe: o caráter do brasileiro, segundo ele, está incorrendo em transformações. Para pior.
Em boa medida, o que identificamos por “caráter do brasileiro”, é uma construção histórica movida pelos motores da ideologia. A tolerância que nos é (ou era) atribuída como característica inata costura alguns belos embustes, a exemplo da fictícia democracia racial que a cada dia se desnuda mais, mostrando em via pública toda a sua obscenidade. E esse discurso, a tolerância brasileira, foi tão bem inoculado em nosso povo, pelo menos desde a construção do Estado nacional independente, que a sociedade assumiu como verdadeiro esse personagem montado para ser a sua imagem e semelhança. Diga-se, não foi –nem poderia ser– uma montagem erguida a partir do nada: houve um barro primordial, matéria-prima extraída da realidade. Mantendo as necessárias proporções de modo a não incorrer em exagero, é um processo similar à criação de personagens de narrativas de contos, romances e novelas, mas o autor, nesse caso, não é uma pessoa física e sim forças ideológicas e sociais.
Isso me lembra o mito do bom selvagem, de que o Romantismo brasileiro em sua primeira fase se aproveitou, criando na literatura um índio inverossímil, idealizado aos modos do cavalheiro das terras europeias, com os devidos ajustamentos. Esse fenômeno aconteceu para atender a necessidade de povoar o imaginário do brasileiro, pois as forças de História haviam gestado um Brasil independente do ponto de vista político e formal, mas para que sua concretização se desse no cotidiano da sociedade era básico que a ideia de nação (o povo de um país unido por sua cultura) se adensasse no brasileiro. A ficção do bom selvagem tupiniquim serviu como instrumento para isso.
A ideia construída de que somos cordiais, receptivos, alegres e tolerantes foi amplamente absorvida por osmose durante grande período de tempo, e eventuais fatos que desmentissem esse conceito fixado no imaginário sempre foram refutados como exceções não representativas do caloroso povo do Brasil.
No entanto, já dizia o poeta Waly Dias Salomão, “a linha de fronteira se rompeu”. Alguma coisa se partiu em nossa organização social, e hoje a imagem construída sob-encomenda para nós não nos veste mais, é um terno cujo defunto é muito maior. Ou, quem sabe, menor. A camada ficcional dessa imagem, com a fratura, parece incomodar, e parte significativa da sociedade assume com todas as letras seu racismo herdado dum Brasil colonial, sua homofobia, sua misoginia. E não é uma bestialidade circunscrita às redes sociais. Antes fosse. Ela está nas ruas, na pessoa que, do alto dum condomínio de luxo em São Bernardo do Campo, disparou contra uma manifestação do MTST no dia 16 de setembro deste ano, ferindo um homem.
Com o respeitoso pedido de vênia a Luis Fernando Veríssimo, talvez não seja o caso de afirmar que o caráter o brasileiro esteja mudando, e sim que uma parte da sociedade se cansou de interpretar nesse teatro um personagem no qual não acredita nem nunca acreditou de fato. Assim, não é que estejamos nos tornando selvagens, conforme o escritor disse, e sim que uma porção de nós está optando por arrancar suas máscaras, e fazer em público aquilo a que se permitiam apenas no espaço privado.
José de Alencar e os indianistas do Romantismo travestiram o nosso indígena para que tivéssemos uma espécie de mito fundador do Estado brasileiro independente. Com isso, a selvageria que foi instalada no Brasil desde a colonização chegou até aos nossos dias com ares de Iracema e Peri.
Ao lançar na fogueira uma maquiagem de civilidade, a parcela do tecido social que o faz não volta ao passado e se comporta como os primeiros habitantes do território brasileiro (antes fosse possível), e sim como uns selvagens pós-modernos: menosprezam solenemente todo conhecimento que negue suas convicções e usam a tecnologia de comunicação midiática para vestir seus preconceitos sem fundamentos com “razões” fantasiosas garimpadas no campo da religião, da moral e até da ciência. Funcionam como lingeries em fetiche sexual. Por óbvio, não praticam a antropofagia no sentido literal e ancestral (também, era só o que faltava) nem no sentido do Modernismo, a estética que pretendeu sobrepujar a herança do Romantismo: pretendem mastigar a cidadania da outra parte da sociedade e palitar os lustrosos dentes com o que sobrar dela.
Esses são os bons selvagens do Brasil contemporâneo, a aguerrida “gente de bem”. A exemplo de todo grupo social, possuem mundividência própria, e porque nela as ideias de predação e de tirar proveito estão bem arraigadas, a “gente de bem” está próxima de antigas animalidades, como a dos antigos badernantes. Ops! Quis dizer dos bandeirantes paulistas, heróis fabricados para encobrir a selvageria de terem matado sem piedade grande número de índios e componentes da tropa que porventura tivessem perdido a utilidade enquanto mulas de carga à medida que entravam nos sertões, abrindo bizarras veredas que nos chegam aos dias de hoje.
Arrebentar terreiros de candomblé e sacrificar travestis nas encruzilhadas da ideologia em favor duma endeusada heteronormatividade; silenciar artistas e professores no exercício de suas funções. Essas as novas missões dos atuais Domingos Jorges Velhos, Borbas Gatos e Raposos Tavares disfarçados de gente civilizada nas metrópoles brasileiras. Escaparam da caixa de Pandora no instante do rompimento ocorrido em nossa sociedade e, se a ruptura não foi definitiva, vai dar trabalho capturar esses diabos velhos.
*Mestre em Letras e Professor de Língua Portuguesa.
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