Por Eduardo Selga*
Na descontínua história de nossas eleições livres (ou nem tanto), o eleitor, vez por outra, demonstra nas urnas sua insatisfação com o momento político pelo qual passa, lançando mão de uma gaiatice um tanto anárquica (no sentido ideológico do termo, não com a conotação de “bagunça”), cujo resultado é a “eleição” de não candidatos, como o rinoceronte Cacareco no pleito municipal de 1959 em São Paulo e o macaco Tião, com seus mais de 400 mil votos para prefeito da cidade do Rio de Janeiro nos anos 80; a aprovação popular de “anticandidatos”, como Tiririca, nas eleições de 2010 (será mesmo que “pior que tá não fica”?) e, mais recentemente, da falaciosa retórica do “antipolítico”, como o atual “administrador” de São Paulo.
Se nosso atual momento é de perplexidade, quase um cenário de ficção, também é de revolta, o que, certamente, aduba o terreno político e o torna fértil para tais gaiatices nas eleições de 2018, se elas de fato acontecerem.
No Brasil de hoje não faltam Cacarecos, e um deles se chama Jair Bolsonaro, parlamentar improdutivo e um rinoceronte político. Também não falta, entretanto, quem acredite que ele encarne o salvador da pátria; que ele tenha propostas consistentes para vencermos a tempestade presente. De outro lado, também há os que votariam numa eventual candidatura dele mesmo sem enxergar um mínimo de coerência em suas “propostas” para o Brasil, apenas por protesto contra “tudo o que está aí”, numa atitude que demonstra uma percepção estrábica da realidade política nacional ou, pior, simples má-fé.
Para alguns desses potenciais eleitores de Bolsonaro é irrelevante o projeto de Brasil que ele porventura apresente, nas múltiplas áreas que esse plano de trabalho precisa contemplar. Importante mesmo, para eles, são duas coisas: primeiramente, nutrir e respirar o mito tão conservador quão boa parte de nossa sociedade de que a ordem militar é igual à paz social e expurgo da corrupção; em segundo lugar, a “zuêra”. Esse termo, por sinal, uma gíria cujo significado não tem limites muito precisos, advém do vocábulo “zoeira” (som alto e muitas vezes confuso), que representa bem o perfil político de boa parte do eleitorado de Bolsonaro.
Considerando o caos institucional e social em que foi posto o Brasil pela somatória de diversas forças, será que podemos nos dar ao luxo de depositar nas urnas mais alguns Cacarecos, se de fato houver eleições em 2018? As eleições não podem ser vistas como um dia no jardim da infância. O país não comporta mais travessuras que concedem poder político a desatinados, uma vez que isso interfere diretamente na vida de cada trabalhador brasileiro.
Travessura é coisa de criança, e o momento histórico pelo qual passamos exige da sociedade que ela abandone a infância em que ela vive e parece gostar de viver. Nesse sentido, todo o sangramento social em que ora vivemos, pode e deve nos servir de doloroso rito de passagem, verdadeiro material didático para que entremos de vez na vida adulta do ponto de vista da cidadania, o que, dentre outras coisas, significa enxergar o voto como uma manifestação política, muito mais que simples obrigatoriedade. Ou seja, eleição é assunto sério. Não cabe mais, portanto, brincar, fazer dos não candidatos, “anticandidatos” e “antipolíticos” nossos bichinhos de pelúcia, e fiquemos a rir, achando a democracia uma coisa muito engraçada.
Sim, pode-se dizer que votar em Cacarecos é um protesto e, assim sendo, um ato político tão legítimo quanto qualquer outro. Entretanto, ao contrário das passeatas e discursos em plenário, cujos efeitos, quando ocorrem, costumam ser a médio ou longo prazo, brincar com a cidadania a tal ponto significa muitas vezes empoderar levianos, irresponsáveis que podem conduzir a sociedade brasileira a um beco sem saída. Ou a um abismo do qual o retorno demandará muitas décadas, muitas feridas sem cura e prejuízo ao Brasil enquanto nação, conceito entendido aqui como um povo com autonomia política que, ao ocupar determinado território, é unido pela cultura e pela história.
A “candidatura” do macaco Tião nas eleições municipais de 1988 foi uma brincadeira da revista satírica carioca Casseta Popular que, posteriormente, foi uma das origens do programa da Rede Globo Casseta & Planeta Urgente!. Se os humoristas que estavam à frente da revista e do programa ainda estivessem em atividade, eu ficaria tentado a pensar que a candidatura do deputado carioca Jair Bolsonaro também seria uma criação deles, aproveitando o ambiente de voto de protesto.
O problema é que Bolsonaro não tem graça, ao contrário do Macaco Tião e do rinoceronte Cacareco. Eleição não pode ser vista como um momento de catarse da sociedade ainda que pela via do humor, pois há o risco de elegermos o nosso próprio sofrimento. É ocasião a exigir cálculo, de modo a não colaborarmos com mais um tijolo para o calabouço que está sendo construído para nós, brasileiros, habitarmos. O que pretendem, e os Bolsonaros da vida batem continência para essa ideia, é que num futuro muito breve sobrem apenas cacarecos de nossa sociedade e um vasto território a ser rapinado.
* Mestre em Letras e Professor de Língua Portuguesa.