Por Eduardo Selga*
As ditaduras não gostam de fatos incômodos. Elas preferem a imagem idealizada da perfeição, construída pela ideologia que as fez existir, ao mundo sensível. Considerando que toda ideologia, por mais ampla que seja, é por definição excludente, as ditaduras, na verdade, não suportam o real — ou suposto real — quando mostrado a partir de quem está fora da bolha ideológica ditatorial. Por isso, a tesoura da censura à divulgação do que acontece na sociedade é vital à sobrevivência das ditaduras. É um pecado indesculpável, a partir da vulgaridade e imperfeição do mundo concreto, desmanchar o mundo idealizado e tido como perfeito para o abstrato “bem comum”.
Durante a ditadura instalada em 1964 no Brasil — militarismo que em minha opinião ameaça sentar-se novamente na cadeira presidencial para manter em alguma ordem o capitalismo se o poder civil não conseguir fazê-lo — houve censura às artes e à imprensa, como não poderia deixar de ser. Para demonstrar esse estado de coisas, jornais influentes na opinião pública usavam recursos criativos, como deixar grandes “clareiras” nas páginas, publicar nos espaços que deveriam estar ocupados com notícias de algum modo desagradáveis ao regime dos generais receitas culinárias (Jornal da Tarde) ou versos de Os Lusíadas (O Estado de São Paulo). Com esses expedientes, muitas vezes resultado de autocensura, ao mesmo tempo em que o jornal obedecia às ordens dos censores, tentava deixar claro para seu público leitor que estava sendo vítima de cerceamento.
Entretanto, há quem ponha em dúvida se receitas, poemas e espaços em branco tenham sido efetivamente atos de resistência. Podem ter sido ferramentas oportunas de adaptação ao regime militar, formando um verniz de indignação e, outra vez, névoas encobrindo a verdade.
Hoje, apesar dos eufemismos, a ditadura está de volta. O diabo é que nesses sofisticados tempos ela retorna com nova roupagem, ocultando-se, como se não fosse. Por enquanto ela se instalou sem blindados nas ruas, mas ainda assim é uma ditadura, pois temos um ocupante do cargo máximo do Poder Executivo nacional que chegou a esse posto por meio de um golpe parlamentar-midiático-judicial travestido de impeachment; aplica-se um neoliberalismo corsário que não foi sancionado pela maioria dos brasileiros nas eleições; o espaço de vocalização para posicionamentos divergentes de fato (não me refiro às maquiagens, às falsas rupturas) é muito menor que o concedido para os discursos de aplauso, mesmo com a Internet, muitas vezes vista como uma panaceia que resolverá as insuficiências de comunicação da esquerda.
Ao menos por enquanto não há censura explícita aos jornalões, até pelo fato de fazerem parte do conluio, mas as receitas de bolo e os espaços em branco continuam existindo, porém de outra forma. O requinte está em publicar o irrelevante, aquilo que de fato não tem importância, exceto na aparência, com o intuito de criar nuvens de fumaça que escondam a gravidade de alguns fatos políticos. O desimportante censura o que realmente merece ser notícia, na medida em que lhe rouba o espaço. Assim é que, por exemplo, performance artística em que uma criança na presença da mãe toca o pé do artista se transforma num assunto importantíssimo, em detrimento de pautas que urgem serem abordadas, como a tragédia social, política e econômica que são o governo Temer e a Operação Lava Jato. Com o mesmo objetivo, temos o caso policial em que se transformou a morte do cachorro labrador da ex-presidente Dilma.
Um dos motivos pelos quais essa estratégia costuma obter êxito, entendo eu, está no fato de a imprensa considerada de esquerda em boa medida funcionar a reboque da mídia corporativa, ocupando-se de ampliar a importância dessas novas receitas de bolo, opondo-se a elas, mas nem sempre ressaltando o que está sendo escondido por meio delas. Noutras palavras, a imprensa de direita pauta a de esquerda, e esta poucas vezes consegue fazer o contrário, ou seja, pôr na mesa assuntos a serem abordados por toda a sociedade, não apenas pelo segmento progressista dela. Ao fazer isso, os jornalões se veriam forçados a tocar no assunto, ainda que pelo viés deles. Aí, sim, a imprensa alternativa combateria o modo como a direita enxerga os fatos. O importante, porém, é que a pauta teria sido elaborada pela esquerda. E eles que corram atrás.
Num certo sentido, a imprensa alternativa de esquerda, confinada na Internet, sem um jornal influente e popular como foi, por exemplo, o “hebdomadário” O Pasquim, ao atuar mais pela reação e menos pela ação talvez esteja fazendo o jogo das forças que arrancaram do poder uma presidente eleita. Ela pode estar escrevendo receitas culinárias cujo resultado é cheiroso, bonito e palatável, mas não é o alimento de que precisamos no atual momento brasileiro.
* Mestre em Letras e Professor de Língua Portuguesa.
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