Por: Fernando Cézar Macedo*
A ponte, com seu “progresso”, contribuiria para acelerar o uso e ocupação do solo e os desmatamentos que se intensificaram já no início do século XX com os trilhos da atual estrada Vitória-Minas (de propriedade da Vale) cuja construção provocou derrubada da mata nativa que serviria,inclusive, para os carvões das locomotivas. Com essas infraestruturas,ampliavam-se no Espírito Santo as ações antrópicas que resultaram em processos econômicos e de urbanização que não poupariam o rio. Repetia-se, em terras capixabas, o mesmo movimento que se observava nos municípios de Minas Gerais, especialmente no Vale do Aço.
Se já não era o mesmo rio de antes, ainda mantinha o charme e sempre valia à pena sentar em algum bar nas suas proximidades e contemplar o mais belo pôr do sol capixaba que se refletia em suas águas. Mais importante, ele continuava a cumprir papel decisivo na organização da vida das populações ribeirinhas, dos pequenos produtores rurais e dos povos indígenas que dele dependiam para sobreviver.Como dele depende, também, o abastecimento de água de milhares de famílias.
A bacia do Rio Doce não é pouca coisa. Possui extensão total de 853 km e área de drenagem com cerca de 83,5 mil km². Abrange 230 municípios, sendo 28 no Espírito Santo e a maioria restante em Minas Gerais.A população deles é de cerca de 3,3 milhões de habitantes (Censo Demográfico do IBGE, 2010). Apesar de sua importância, observa-se processo secular de exploração econômica insustentável, capitaneado por grandes grupos que utilizam seu território sem respeito à diversidade, ao meio ambiente e às formas de vida das populações que não se organizam exclusivamente pela métrica do capital. Dentre as empresas que atuam no vale do Rio Doce destacam-se, por exemplo, a Companhia Siderúrgica Belgo Mineira, a ACESITA, a USIMINAS, a Vale e a Samarco.
O desastre ocorrido no dia 5 de novembro em Mariana (MG) não foi uma fatalidade como outras tantas que ocorreram ao longo do tempo como faz crer um deputado federal capixaba em audiência na Câmara, no dia 18 deste mês. O parlamentar afirmou categoricamente que tragédias e questões ambientais sempre existiram na história da humanidade, como eram as enchentes no Rio Nilo ou outras que, segundo ele, podem ser constatadas na leitura do Alcorão ou da Bíblia.
Bem, é preciso lembrar ao representante do Partido Verde que, no capitalismo, as tragédias, como a de Mariana(MG), são resultados de uma forma de produção que se impõem avassaladoramente como se a ela não houvessem alternativas. Pior, no nosso caso,ela se impõe a partir de interesses externos com o consentimento inerte da elite associada de dentro que se beneficia, com isso, da especulação fundiária, da concentração de renda, dos investimentos públicos etc. Em tudo, portanto, difere das tragédias ocorridas no passado pois aquelas, sim,eram, em sua maioria, fruto de intempéries sobre os quais a humanidade muito pouco poderia fazer. Ao parlamentar capixaba, junta-se a presidente Dilma que classificou o desastre como natural, para fins de resgate do FGTS, e foi criticada, por isso, inclusive, pela Procuradoria Geral da República.
A desfaçatez com que o problema é tratado é alarmante. Se é meritória toda crítica à ação inepta e desumana da Samarco antes e após a ruptura das barragens, à falta de fiscalização dos órgãos públicos, à ausência de informações, ao baixo valor da multa para casos como este etc, nada se fala sobre nosso modelo de desenvolvimento que historicamente sempre se ancorou numa tríade perversa: a) controle ferrenho do território por uns poucos associados ao capital internacional, b) superexploração da força de trabalho e c) utilização de recursos públicos para fins de acumulação de capital.
Em torno dessa tríade se formou o pacto de integração da economia brasileira à economia mundial desde a Colônia, negando reiteradamente ao seu povo o direito de organizar e construir uma sociedade baseada em valores diferentes daqueles impostos pelo capital imperialista, a partir do uso do território nacional com fins de se constituir um país democrático e socialmente justo. O setor de mineração é, provavelmente, o que melhor encarna a pactuação dessa santíssima trindade às avessas: se beneficia de desoneração de ICMS para suas exportações (e outra benesses públicas), destrói modos de vida de populações inteiras, portanto, subjuga a força de trabalho aos seus ditames e privatiza o território que ele exaure ao limite, negando-lhe qualquer uso que não os de seus interesses. Não é por outra razão que o governo de Minas Gerais, através da do PL 2946/15, procurar arbitrariamente agilizar os processos de Licenciamento Ambiental que ficariam centralizados no executivo estadual, facilitando a concessões de licenças para as empresas e garantido, assim, o pacto de dominação privada do território.
Por isso, o que se vê após a tragédia, verdadeira crônica de uma morte anunciada, é governador de estado concedendo entrevista na sede da empresa, secretário estadual de meio ambiente afirmando que a “Samarco é vítima do rompimento” e “que a fiscalização ambiental precisa deixar de ser realizada pelo Estado e passar para a responsabilidade da iniciativa privada”, além de executivo da empresa afirmando que ela “não precisa pedir desculpas” (ver matéria em http://www.brasildefato.com.br/node/33507). Sem falar de prefeito que alega que seu município não pode abrir mão das atividades da Samarco.
O que todas essas afirmações demonstram é que o pacto de dominação não permite questionamentos ao modelo de desenvolvimento do país fadado a ser um eterno produtor especializado em com modities para o mercado mundial. A FOLHA DIÁRIA já publicou alguns artigos acerca da nossa dependência externa e submissão aos interesses do capital internacional. Esta é uma questão nevrálgica que precisa ser enfrentada e para qual os olhos oficiais (e privados) se fecham. Afinal, é preciso questionar qualquer modelo econômico cujo principal objetivo é atender demandas externas que internalizam nos países subdesenvolvidos as mazelas do modo de vida dos países centrais e que nos impõe exploração exaustiva de nossos recursos naturais e modificações no modo de vida de nossas populações.
Por isto, a privatização da antiga Companhia Vale do Rio Doce,atual Vale que é co-proprietária da Samarco, precisa ser revista. Não apenas porque seu preço de venda ficou entre 20 a 30 vezes abaixo do valor de mercado estimado, a depender das projeções, o que já seria um crime de lesa-pátria. Precisa ser revista não para ressuscitar o debate secular sobre eficiência privada versus eficiência do setor púbico, mas porque o controle de grande parte do território do país, por empresas que exercem atividades de grande risco explorando recursos finitos,não pode ficar à mercê de decisões de grupos específicos que estão apartados dos interesses mais urgentes de nossa sociedade.
Por fim, peço licença ao leitor para encerrar com uma longa citação de Darcy Ribeiro, brasileiro que como poucos entendeu a subordinação do Brasil à ordem internacional e lutou arduamente para emancipação do nosso povo e pelo respeito à sua diversidade.
Para ele, o nosso desenvolvimento precisaria retomar “(...) o caminho da industrialização autônoma, da realização das potencialidades econômicas do país, através da exploração intensiva dos recursos nacionais bem como modificação e integração na vida nacional de imensas reservas disponíveis de mão de obra. Sua adoção requer, porém, uma mudança prévia da estrutura de poder que retire a capacidade de decisão das mãos das classes dominantes que fracassaram secularmente em assegurar progresso autônomo e em implantar regime democrático e participação popular. Este malogro só diz respeito ao povo e à nação. Para as classes dominantes, que se constituíram e cresceram associadas à espoliação externa (primeiro colonial, depois imperialista), a progressão histórica brasileira representou um modo de sobrevivência. Seus interesses se identificam tão profundamente com a perpetuação da dependência externa e da exploração classista que só uma erradicação pode ensejar uma superação deste enquadramento, responsável pelo atraso do país e pela penúria da maioria da sua população” (Darcy Ribeiro, Teoria do Brasil, páginas 59 e 60)
Portanto, é preciso repensar o modelo de desenvolvimento. Para tanto, aproveitar este triste momento para discutir seriamente o papel da indústria extrativa no Brasil já seria um bom começo.
*Doutor em Ciências Econômicas e Professor Livre-Docente da Universidade Estadual de Campinas.
** Publicado também em Folha Diária
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