Por: Fabrício Augusto de Oliveira
Depois de operar e atuar por décadas nas sombras do poder, de uma maneira geral contra os interesses da sociedade como um todo, o PMDB, visando manter seu espaço de influência nas decisões estratégicas da política do governo, acaba de lançar oportunisticamente, para dele não se afastar, diante do enfraquecimento da presidente Dilma, um documento com propostas de reformas para o País sair da crise, intitulado “Uma ponte para o futuro”.
Tal como o que recentemente foi lançado pelo Senado Federal, patrocinado por seu presidente Renan Calheiros, também do PMDB, as propostas ali apresentadas, ao contrário do que anunciam, representam um retrocesso quando se considera seu objetivo que é o da reconstituição de um “Estado moderno, próspero, democrático e justo”.
Colocando-se como fiador deste projeto para a nação, o documento do PMDB, fazendo coro às vozes da ortodoxia, atribui as dificuldades do País às ações do Estado voltadas para beneficiar as políticas sociais, entendendo que sem a construção de “uma trajetória de equilíbrio fiscal duradouro, com superávit operacional e redução progressiva do endividamento público”, não há como escapar dessa crise. Daí deduz que, para purificar-se e se candidatar novamente a ingressar no paraíso do crescimento, o Brasil tem, necessariamente, de resolver primeiramente essa questão.
Ora,
ao enunciar de modo tão categórico as causas e raízes da crise atual,
que identifica na generosidade da Constituição de 1988 com a criação de
um sistema de vinculação de receitas para o financiamento das políticas
sociais, que estaria garantindo, no tempo, um crescimento dos gastos do
Estado superior às suas receitas, os remédios que propõe para sua
solução não poderiam ser diferentes.
Ao lado de acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, sugere dar fim a todas as indexações existentes, seja para “salários, benefícios previdenciários e tudo o mais”, e estabelecer um limite para a expansão das despesas inferior ao crescimento do PIB. Além disso, atribui, ao Legislativo, poder tanto para definir as prioridades orçamentárias com a implantação do “orçamento de base zero” quanto de atuar como “autoridade orçamentária”, responsável por avaliar, acompanhar e fiscalizar a execução dos programas públicos, corrigindo excessos e desvios cometidos pelo Executivo em relação às metas garantidoras do equilíbrio fiscal.
A essência da proposta é, portanto, a de rasgar a Constituição de 1988 no que diz respeito à rede de proteção nela estabelecida e retirar, do Executivo, toda e qualquer influência que este hoje dispõe para formular, propor e implementar programas que coloquem em risco a meta sagrada do ajuste fiscal. Enfim, substituir na prática, no País, o presidencialismo pelo parlamentarismo, como se os parlamentares estivessem, em sua maioria, despidos de interesses fisiológicos, particulares e familiares, e em condições de, efetivamente, lutar por interesses mais nobres da sociedade como um todo, com suas bancadas do “boi, da bala e da bíblia”.
Depois de despejar uma artilharia pesada nos programas sociais e na previdência social, como causas da falência do Estado brasileiro, o documento mantém-se silente sobre as despesas tributárias nas quais o Estado incorre com o capital, por meio de renúncias tributárias e subsídios concedidos às empresas, estimadas pela Receita Federal em R$ 280 bilhões, ou 4,9% do PIB só em 2015, e sobre os juros da dívida que o Estado paga a seus credores, que já atingiram, até setembro, 8,9% do PIB, no acumulado de 12 meses, como se não tivessem nenhuma responsabilidade neste desequilíbrio e no crescimento da dívida.
Ao
retirar do capital e da riqueza financeira qualquer responsabilidade
nessa situação, o documento não poderia ir muito longe na proposta de
uma reforma tributária que contribuísse, de fato, para ajudar a remover
alguns dos entraves que se opõem ao crescimento econômico, à redução
mais sustentável das desigualdades sociais e à reconstrução do
federalismo no País. É, por isso, de uma pobreza franciscana.
Isso porque se restringe a descartar qualquer aumento na carga de impostos na promoção do ajuste de longo prazo por considerá-la muito elevada quando comparada aos padrões vigentes nas economias emergentes e até mesmo em relação a alguns países desenvolvidos, reduzindo a competitividade da produção nacional e operando como obstáculo ao crescimento mais sustentado. Nada diz, contudo, sobre a sua composição, na qual residem os principais problemas do sistema tributário brasileiro e para os quais sua reforma é mais do que necessária caso se pretenda ressintonizá-lo exatamente com os objetivos do crescimento, da equidade e da federação.
Ora,
mesmo os que não são especialistas em tributação sabem que o sistema de
impostos no Brasil, além de muito complexo e pouco transparente,
carrega, em sua estrutura, um peso muito elevado dos impostos indiretos,
reconhecidamente regressivos, que respondem por cerca de 70% da
arrecadação (incluídos os incidentes sobre a folha de salários), o que
enfraquece o mercado interno ao jogar o maior fardo de seu ônus sobre os
ombros mais fracos. E que, entre estes se incluem impostos de má
qualidade, de incidência cumulativa, prejudiciais para a competitividade
por onerar excessivamente a produção, devido à tributação em cascata.
Por isso, qualquer reforma deste sistema que tenha a preocupação de reformá-lo, visando a ajustá-lo para os objetivos do crescimento econômico com equidade, não pode simplesmente ignorar as mudanças que devem ser feitas nessa estrutura, dando-se maior ênfase à cobrança dos impostos diretos vis-à-vis os indiretos, não somente por uma questão de justiça tributária e social, mas até mesmo por uma razão econômica, considerando que são as classes de mais baixa renda as que possuem maior propensão ao consumo e que, por isso, podem ajudar a manter com maior vigor o mercado interno.
Esse
deslocamento das bases de incidência dos impostos, que significaria
cobrar mais impostos de quem mais ganha, ou seja, das rendas mais altas e
da riqueza financeira, principalmente, e que apresenta um potencial
elevado de arrecadação, poderia abrir espaços para a reforma da
tributação indireta e mais do que compensar perdas que com ela poderiam
ocorrer com a extinção ou redução dos impostos cumulativos, ao mesmo
tempo em que se tornaria possível reduzir sua regressividade,
estabelecendo-se alíquotas seletivas destes impostos de acordo com a
essencialidade do produto.
Este não é, no entanto, um caminho que, tal como ocorre com o pensamento conservador, interesse ao programa proposto pelo PMDB, já que contraria os interesses das classes dominantes. Por isso, sua proposta, neste campo, cinge-se a sugerir um “vasto esforço de simplificação do sistema, reduzindo o número de tributos e unificando a legislação do ICMS, com a transferência de sua cobrança para o Estado de destino da mercadoria, e também, a desoneração das importações e dos investimentos”, como se simplificar fosse sinônimo de modernizar.
Embora essas sejam medidas que devam ser consideradas em uma eventual reforma para simplificar o sistema, coibir as guerras fiscais entre os governos subnacionais e melhorar um pouco a competitividade da produção nacional, representam muito pouco para quem se propõe a cimentar as bases da economia para um crescimento autossustentado e para a reconstrução de um “Estado moderno, próspero, democrático e justo”.
Talvez para não ser rotulado de excessivamente tendencioso nessa questão, o documento ainda se aventura, no apagar das luzes de seu encerramento, a rapidamente propor uma vaga “redução das exceções para que os grupos parecidos paguem impostos parecidos”. O que pouco significa pela sua inconsistência com a análise realizada, figurando, pela sua imprecisão, mais como um jogo de cena da proposta. Não é com este documento que o partido irá resgatar o compromisso histórico do antigo MDB com as lutas democráticas por um Estado de direito, próspero e justo, e nem com a “Constituição cidadã” do Dr. Ulysses Guimarães.
*Doutor em economia pela
Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, colaborador do Brasil
Debate e Debates em Rede e autor, entre outros, do livro “Política
econômica, estagnação e crise mundial: Brasil, 1980-2010”
** Publicado também em CARTA MAIOR e Folha Diária.
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