Profa Dra. Neide César Vargas – Departamento de Economia/UFES
A situação fiscal do Brasil atual é de extrema gravidade. No curto prazo a retração do PIB e a consequente queda da arrecadação é o principal fator de impacto desfavorável sobre a mesma. Como as receitas não cobrem sequer as despesas primárias, num contexto de explosão dos gastos financeiros, o indicador oficial do déficit público para o Setor Público Consolidado - a Necessidade de Financiamento do Setor Público nominal - atingiu patamares estratosféricos de 10,4% do PIB, no ano passado,e de 5,2%, no primeiro quadrimestre de 2016.
A Dívida Pública Bruta para os três entes federativos, adentra uma trajetória perigosamente explosiva, alcançando R$ 4,04 trilhões, 67,5% do PIB em abril de 2016. Deve-se ainda pontuar que a dívida mobiliária em mercado, somada às operações compromissadas do Banco Central, totalizaram, em abril deste ano, 61,7% do PIB. Esse é o componente do endividamento público mais importante para explicar seu montante e o caráter explosivo da despesa com juros do governo central. Nele se manifesta o alto nível de exposição do governo aos humores do mercado financeiro.
Em função desse perfil de endividamento, num quadro fiscal de forte deterioração como o atual, entra-se num circulo vicioso no qual o ajuste fiscal depende do crescimento econômico, o crescimento econômico, mediado pelas expectativas dos agentes, depende de uma situação fiscal que inspire confiança e, adicionalmente, um ajuste fiscal forte tende a aprofundar ainda mais o quadro recessivo.
O governo interino, ante tais dificuldades, busca encontrar saídas optando pelo caminho mais deletério à maioria: fazendo cortes significativos nas políticas sociais e propondo reformas estruturais que reduzem direitos. Saídas menos traumáticas, todavia, requerem primeiramente um diagnóstico correto das contas públicas de um ponto de vista estrutural e de longo prazo. Mesmo que se tenha em conta certo crescimento de gastos primários ao longo dos últimos anos e do fato de há vários anos se opere com um nível elevado de gastos obrigatórios o caminho a se seguir não é único.
Esta análise focalizará em um aspecto específico, relacionado a estratégia de estímulo às empresas nacionais por meio de desoneração tributária e de subsídios creditícios. Essa política, intensificada a partir de 2012, além de não ter sido bem sucedida nos seus objetivos de retomada sustentada do investimento, trouxe efeitos deletérios sobre as contas do governo central. Após a assunção do governo interino essa estratégia foi convenientemente esquecida da pauta de discussões. No contexto de crise das finanças públicas é fundamental entender os mecanismos a ela associados cujos impactos se perpetuam e geram efeitos estruturais na esfera fiscal.
Analisemos tais mecanismos inicialmente a partir dos elementos que ampliam o endividamento mobiliário e as despesas financeiras do governo federal. O primeiro desses elementos é a própria rolagem da dívida mobiliária pré-existente, dívida essa que cresceu também devido à estratégia de fomento ao investimento empreendida. O agravamento da incerteza política e econômica, por fatores que em muito extrapolam a dimensão fiscal, ensejou, nos últimos dois anos, a elevação da taxa SELIC, a desvalorização cambial, a elevação da inflação, a alteração da remuneração e prazo dos títulos prefixados, todos esses fatores com impacto desfavorável sobre as condições de rolagem da dívida mobiliária prévia.
A instabilidade reinante eleva os custos e reduz os prazos de rolagem dessa dívida. No ano passado, por exemplo,só o Governo Central gastou o equivalente a R$ 397,24 bilhões (6,7% do PIB) com juros nominais referidos a sua dívida líquida total.O estoque da dívida mobiliária federal em mercado, por outro lado, cresceu 24% ao longo de 2015, atingindo, em abril de 2016,R$ 2,63 trilhões. O segundo elemento a considerar é a relação do Tesouro com o BNDES e demais instituições financeiras públicas. Para além das propaladas pedaladas fiscais, os créditos do Governo Central a essas instituições, crescentes nos últimos anos, ampliaram o endividamento bruto do governo central e as suas despesas financeiras.
Essas últimas cresceram consideravelmente devido aos custos associados ao diferencial de remuneração segundo o qual o recurso foi tomado pelo tesouro (geralmente taxa SELIC) e aquela segundo a qual ocorre o seu reembolso (geralmente TJLP). O volume de recursos envolvidos nesses créditos é da ordem de 9,3% do PIB. É essa atuação do Tesouro o que sustentou as políticas de crédito barato ao investimento promovidas pelo BNDES, alimentando a dívida mobiliária. Um redimensionamento do BNDES e mais focalização de sua política de fomento ao investimento é fundamental. Não obstante, a reorientação dessa instituição para a privatização, como está em curso na atualidade, resulta danosa a médio prazo. Ela canaliza recursos subsidiados para financiar privatizações, que deveriam ser arcadas pelo próprio setor privado.
Adicionalmente, a pedalada às avessas que tem sido proposta, com devolução antecipada de recursos devidos pelo BNDES ao Tesouro da ordem de R$ 100 bilhões, gera impactos negativos sobre o BNDES. Tais saídas em curso além de não resolverem os impactos fiscais negativos do passado criam duas novas frentes de impactos desfavoráveis nas contas públicas: ampliam a dívida líquida, ao reduzir os ativos de posse da União, e lhe retira receitas de dividendos geradas pelas empresas que porventura venham a ser privatizadas. Não agregam, por outro lado, as vantagens habituais de desoneração de dívidas de empresas privatizadas, tendo em vista que seu volume não é tão significativo como era nos anos áureos da privatização de FHC.
Além da dimensão patrimonial um terceiro mecanismo deve ser destacado, agora no campo das contas primárias e relacionado à política de desoneração fiscal. A brutal queda real da receita do Tesouro Federal, equivalente a 6,8% entre 2015/2014, torna proibitiva a manutenção dessas desonerações, que assumiram entre 2011/2014 volumes da ordem de R$ 152 bilhões. São recursos que deixam de entrar nos cofres do governo e pioram a sua condição de arcar com as despesas primárias. Do ponto de vista do ajuste fiscal, ao invés de desonerar o correto seria, no curto prazo, elevar a carga tributária por meio da recriação da CPMF e cobrança da CIDE. Essa proposta do governo Dilma foi reconhecida como necessária pelo Ministro Meirelles. A despeito da CPMF ser um tipo de tributação em cascata, ela atinge predominantemente aos segmentos de maior renda e funciona como um mecanismo adicional de fiscalização do Imposto de Renda, contribuindo também para a ampliação desse tipo de receita. Por outro lado, no campo dos gastos, o item mais explosivo no ano passado foi o de Subsídios e Subvenções Econômicas, elevação nominal de 556%, atingindo R$ 58,93 bilhões em 2015.
Estão aqui arrolados os custos fiscais associados ao reordenamento de passivos, associados a politicas de subsídios creditícios. Dessa forma, percebe-se que existem pontos importantes a se ajustar nas frentes destacadas. Não obstante, a opção do governo parece mais indicar uma política de desmonte das políticas sociais adotadas pelo PT ao longo dos últimos anos. Alça à categoria de ministros das áreas sociais personalidades que se notabilizaram por críticas pesadas às políticas até então adotadas. Além disso, sinaliza reformas e cortes profundos especialmente na saúde e na educação.
No campo da previdência as proposições veiculadas mostram também reformas com forte conteúdo regressivo. Adicionalmente, recoloca a privatização na agenda, e orienta o BNDES para o financiamento dessas ações. Reforçando a suspeita de que o corte de gastos é seletivo e voltado predominantemente para o desmonte de políticas sociais implementadas desde 2003, o governo aprovou uma “meta” de déficit para 2016 de R$ 170 bilhões, acima do proposto por Dilma (R$ 89 bilhões), parecendo muito mais ser um salvo conduto para gastar. Corrobora essa suspeita a aprovação recente da criação de 14 mil novos cargos no Executivo, reajuste de salário para o Judiciário e o Executivo, com impacto sobre as contas públicas de R$ 56 bilhões até 2019. Os caminhos de condução das contas públicas em curso no governo Temer mostram exatamente que parcela da população foi escolhida para pagar o pato da crise.
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