Antonio Rocha Neto
Era pobre; morava num bairro pobre; Bairro do Bambual. Era tão pobre que nem barraco próprio tinha. Alugava um barraco de dois cômodos (nada cômodos); na verdade um cômodo e meio, o restante havia desabado. Tinha mulher, oito filhos e uma amante. Todos (menos a amante) moravam no barraco. Trabalhava como gari, trabalho pelo qual percebia, ao final de cada mês, a quantia de um salário mínimo. Na verdade, mal percebia o salário.
Apesar de tudo, viviam em estado de relativa felicidade, não me perguntem como, até o dia em que o prefeito resolveu urbanizar o bairro: calçar as ruas, colocar esgoto, água, luz e, pasmem, telefone! Foi o prefeito inaugurar as obras num dia e o dono do barraco bater-lhe à porta no dia seguinte. O motivo era óbvio: precisava reajustar o aluguel. Resultado: foi o prefeito inaugurar as obras num dia e o pobre do gari mudar-se para um bairro ainda mais pobre no dia seguinte. Na verdade, após as “benfeitorias” a população do bairro alterou-se quase que por completo. Os que moravam de aluguel tiveram que se mudar, e os que tinham um barraquinho venderam-no para as construtoras e foram mais para a periferia. Só lucrou mesmo quem tinha vários barracos alugados e que, obviamente, não morava no Bambual. Até o nome do Bairro mudou: de Bambual para Jardim do Éden.
Formou-se então o Bambual II. É claro que o Bambual II era muito parecido com o Bambual I: os mesmos moradores, os mesmos problemas, a mesma miséria. Com um agravante: era mais longe, mais periférico que o Bambual I. O novo bairro foi logo apelidado de “Bairro Infernal”; afinal, o grosso de seus habitantes haviam sido expulsos do Jardim do Éden.
Um dado curioso é que somente os bairros de periferia dão origem a novos bairros com o mesmo nome. Não tenho conhecimento de uma Praia do Canto II, Bento Ferreira III, Ilha do Boi IV (até que Ilha do Boi de quatro seria um bom nome!).
Mas voltando ao caso de nosso gari, é interessante observar que, conquanto todas as evidências conduzissem a conclusão radicalmente oposta, os moradores do Bambual II, ou “Bairro Infernal”, como queiram, viviam em estado de relativa felicidade, não me perguntem como.
E assim viveram, em estado de relativa felicidade, não me perguntem como, até o dia em que o novo prefeito, do mesmo partido do anterior, resolveu “dar prioridade as às obras de cunho social” e continuar o trabalho de seu antecessor “reafirmando a política de preferência pelos pobres”, bandeira de seu partido, através da erradicação daquele bolsão de pobreza que era o Bambual II, “dotando-o de toda infra-estrutura básica, de modo a assegurar uma vida mais digna àqueles irmãos mais necessitados.”
Assim foi dito e assim foi feito. Tiveram então origem dois novos bairros na cidade: o Bairro Esperança, antigo Bambual II, e o Bambual III. E adivinhem quem foi um dos fundadores do Bambual III ? Ele mesmo, nosso amigo gari, sua mulher e seus cinco filhos (três haviam morrido de insuficiência alimentar crônica). A amante ficou no Bairro Esperança, e na esperança de dias melhores resolveu abrir as...... portas para parceiros mais promissores, do ponto de vista sexo-econômico.
O Bairro Esperança foi assim batizado pelo seguinte motivo: era um bairro bonzinho, mas não tanto quanto o Jardim do Éden, para o qual tinham a esperança de se mudarem um dia e, talvez por isso, não eram tão felizes como os moradores do Bambual III.
Com o tempo os dois novos bairros também ganharam apelidos: o Bambual III ficou conhecido como “Bairro Perinférnico”, e o Bairro Esperança, por estar entre o Jardim do Éden e o “Perinférnico” e o Jardim do Éden, fico sendo o “Bairro Purgatório”.
Tantas foram as urbanizações, tantos foram os mandatos sucessivos do partido e tão ostensiva foi a “política de preferência pelos pobres” que o pobre gari, um belo dia, pegou sua mulher e seus dois filhos (precisa explicar ?) e mudou-se do Bambual XVIII. Só que desta vez não foi para o Bambual subsequente; preferiu mudar de cidade. Mudou também de profissão: de lixeiro para catador de lixo (*). Foi para uma cidade vizinha, onde o partido nunca ganhava eleições. Era tudo o que ele queria: uma administração pública que o esquecesse no seu canto. Tudo o que ele queria era viver em estado de miséria absoluta e felicidade relativa, não me perguntem como, nem me perguntem se ele conseguiu!
(*) - A diferença é sutil, e se assenta na relação sujeito objeto que ambos travam com o lixo: o lixeiro vê o lixo como ganha-pão, enquanto o catador de lixo vê o lixo como pão.