Por: Anaximandro Amorim
No dia 06 de novembro de 1983, eu ainda tinha quatro anos. Faria cinco só em dezembro. Will Bryers tinha doze. Nós não nos conhecíamos até então. Na verdade, só fui conhecê-lo 33 anos depois do seu desaparecimento. Calma, leitor, se você não entendeu nada até agora, corra para assistir à série "Stranger Things". Até eu, que jurei para mim mesmo que jamais me viciaria em seriado, capitulei. Pois é.
A trama se passa na cidadezinha de Hawkins, a partir daquele dia até o final de 83. Uma turma de meninos está no porão de casa de um deles, jogando RPG. Não havia Pokémon para caçar. Nem celular com rede social. A comunicação se fazia mano a mano, olho por olho. Claro, havia também os clichês de um digno filme de "Sessão da Tarde": os nerds, os loosers, os winers, a garota mais bonita do colégio... mas, até isso ajuda quando o menino Bryers é levado misteriosamente de casa, depois daquele jogo.
"Stranger things" já começa instigante pelo nome. Amigos anglófonos, me corrijam se eu estiver errado, mas, "stranger", além de estrangeiro, pode ser "sumido", também, não? Ou "perdido"? Mas, mais que um jogo lexical, ao menos, para mim, além de um roteiro muito bem escrito, a série prima por uma constituição de época esmerada. E olhe que, quando se trata de anos 1980, eu sempre acho que poderia ser melhor. Não tem como não se emocionar ao ver a meninada de cabelo de tigela, os óculos de aro grosso, as camisetas por dentro da calça e toda a cafonice que eu já usei, um dia e talvez você leitor (de mais de 30 anos), admita, também.
Porém, creio que, mais que o mistério, o roteiro e a produção, o grande trunfo de "Stranger Things" é a nostalgia. Aqueles anos 1980 foram uma época em que ter uma bicicleta nova era o must da meninada. A falta de celular foi criativamente resolvida por poderosos walkie-talkies e é esquisito ver escritórios sem qualquer computador sobre a mesa. Mas, a despeito disso, a gente vivia, porque... a gente se conversava! Mesmo que por telefone (durante horas, ocupando a linha). E essa nostalgia, certamente, é o grande trunfo do seriado, cativando quem viveu essa época (como eu) e quem não viveu (seja por curiosidade, para rir de como era ou por uma "saudade do que nunca se teve").
Claro, nada disso funcionaria sem uma boa trama. O diretor Alfred Hitchcock dizia que as três qualidades de um bom filme são: um bom roteiro, um bom roteiro e um bom roteiro. A história (regada a grandes hits como "Should I stay or should I go, do Clash, por exemplo), tem velocidade, ótimos pontos de virada e um mistério que instiga. A série conta com a veteraníssima Wynona Ryder e um bom elenco, mas, acho, as crianças são um show à parte. Principalmente a menina "Onze" (por que, não digo). Quem trabalha com criança, sabe como é difícil. Em tempo: o mesmo Hitchcock definia ator como o seu "gado". Com todo o respeito, mas, que pena que ele não tem como ele ver a série.
A série tem outros detalhes, tantos que eu não conseguiria dizer em uma crônica. Nem para adiantar a história, o famoso spoiler de hoje em dia. Sou contra a pena de morte em todos os casos, exceto para quem conta final de filme. Mas, preste atenção em um monstrinho do jogo de tabuleiro dos meninos, o Demogorgon. A trama tem só oito capítulos de uma hora e ainda está na primeira temporada, portanto, ainda dá tempo. Seria legal se os irmãos Duffer fizessem um especial de como anda a turma, hoje. Bateria um papo com um Bryers já quarentão e perguntaria por que essas coisas só acontecem nos Estados Unidos, e nunca no Brasil. Não que eu queira, claro. Cruzes!
Publicado também em www.anaximandroamorim.com.br