Quando pensamos em uma bolsa de valores, a primeira imagem que geralmente nos vem à cabeça é um aglomerado de indivíduos portando aparelhos telefônicos e, ao mesmo tempo, gritando compulsivamente uns com os outros a respeito de ordens de compra e venda de ações, enquanto olham ansiosos, com expressões de euforia ou pânico, para monitores que passam de modo veloz informações e cotações de preços. Essa imagem, praticamente uma metonímia do capitalismo financeiro consagrada em coberturas fotográficas, televisivas e cinematográficas praticamente não existe mais.
Em silêncio, o espaço físico das bolsas de valores, assim como os próprios indivíduos que antes gritavam no interior delas, tem pouca ou nenhuma função prática. As negociações ocorrem agora em potentes computadores e centros de dados operados 24 horas por dia em várias partes do mundo. No lugar dos antigos pregoeiros, compradores e vendedores de ações, estão físicos e astrofísicos, estatísticos, economistas formados nas melhores universidades do mundo e “gênios” da matemática que desenham algoritmos e estratégias de negociação automatizada para serem realizadas na velocidade de milissegundos por meio desses sistemas. O “espírito animal” dos mercados, conforme conhecida expressão de Keynes, livre de muitas de suas amarras materiais, corre hoje nas linhas de transmissão de fibra ótica de altíssima velocidade. Essa importante mudança ocorreu, em grande parte, graças ao avanço das Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs) que se deu, sobretudo, a partir das últimas três décadas.
Desde o início década de 1980, momento que marca a aceleração do processo de transformação econômica estrutural definido como mundialização financeira, tal avanço do desenvolvimento tecnológico, no que se refere aos mercados de capitais, segue, basicamente, duas grandes tendências: i) o forte investimento na construção de sistemas de produção e circulação de informações em tempo real e ii) a produção de meios capazes de viabilizar a realização de negociações simultâneas em diferentes mercados na maior velocidade possível.
Desde a antiguidade, o acesso a informações privilegiadas é um elemento fundamental na gestão do comércio e dos negócios. De alguma forma, a mesma fórmula, ainda que em outro nível de abstração, é verdade, pode ser aplicada na compreensão das razões que ativam o movimento de desenvolvimento técnico para operação nos mercados financeiros contemporâneos: antecipar, compilar e organizar informações prioritariamente e/ou antes dos concorrentes, para obter ganhos econômicos a partir delas. Daí tais dimensões, informação e tempo, serem fundamentalmente os eixos do veloz avanço na utilização das Tecnologias de Informação e Comunicação nos mercados financeiros. O tempo, hoje fracionado em divisores infinitesimais, pode significar muito dinheiro.
Explorando a crescente flexibilização e liberação dos mercados financeiros em nível global, o avanço tecnológico acabou por impor-se como uma das principais fronteiras da competição entre os investidores, ciosos de ganhos crescentemente elevados no menor intervalo de tempo possível. A trajetória de tal avanço acabou por produzir um cenário em que negociações automatizadas de alta frequência (High Frequency Trading) são utilizadas como instrumento de especulação e arbitragem entre diferentes ativos nos mercados, inflando o ganho dos investidores que melhor dispõem dessas tecnologias.
Tal cenário aponta para o que denomino “Finança Digitalizada”: o complexo técnico-operacional de gestão da circulação, acumulação e valorização do capital financeiro por meio de recursos tecnológicos automatizados de ponta que aceleram a compressão dos fluxos espaço-tempo para exploração de ganhos financeiros por meio de especulação e arbitragem de papéis, moedas e outros ativos.
Tal tendência para compressão do tempo, ou para descontar futuro no presente sem garantias de que seja realizado, no entanto, guarda suas origens no próprio processo de configuração da dominância financeira na economia capitalista globalizada, na medida em que essa busca encontrar novas formas de valorização para o capital. Mudanças institucionais e regulatórias levadas à cabo com especial ênfase a partir das décadas de 1970 e 1980, declaradamente voltadas para o aumento de competitividade, abriram caminho para uma estrutura de mercado favorável às negociações automatizadas. Isso porque o aumento em volume e velocidade dos negócios nos mercados, enfim liberalizados, forçou uma reconfiguração das estruturas de negociação. Em questão de poucos anos, o tempo utilizado no processamento de ofertas e de fechamentos de negócios nas bolsas de valores foi deixando de ser medido em minutos e segundos para ser contabilizado em mili, micro, e até em nano segundos. Trata-se de uma importante vantagem competitiva na mão dos atores que dispõem de tais recursos, e que encontram, dessa forma, por meio de ganhos crescentes, condições e incentivos para seguirem investindo em tal avanço. Assim, as tecnologias são superadas rapidamente umas pelas outras, em crescente nível de capacidade e sofisticação, impondo novos desafios e dificuldades para todas as categorias de investidores.
Tudo somado, a suposta função social conferida aos mercados financeiros nas economias capitalistas – como alocadores de necessidades econômicas, que possibilitam o encontro entre compradores e vendedores, tomadores e emprestadores de recursos de modo a viabilizar investimentos voltados à produção capaz de gerar emprego e renda – perde cada vez mais relevância, em detrimento de uma lógica crescentemente especulativa a drenar e concentrar os excedentes da produção social na esfera financeira, que passam a ser retro-explorados por meio de arbitragem na escala de microssegundos, viabilizada por avanços tecnológicos de ponta. Observa-se, dessa forma, reforçada a partir dessas dimensões, a ampliação dos incentivos para a contaminação da lógica curto-prazista, em distintas esferas da economia capitalista em nosso tempo, fortalecendo seu processo de financeirização em sentido amplo.
Ainda que a velha racionalidade de obtenção do maior ganho no menor tempo possível mantenha-se como o eixo compreensivo do modus operandi da Finança Digitalizada, a nova realidade é capaz de produzir instabilidades e problemas antes não observados. Daí a importância de ser bem compreendida; não há como explicar os mercados financeiros no início do século XXI, e o papel que ocupam na economia globalizada, sem adentrarmos na discussão a respeito de suas lógicas e dinâmicas de funcionamento operacional. Seja devido à crescente diminuição do fator humano em todas as etapas do processo de negociação nos mercados, seja por conta das novas possibilidades que abrem de ganhos literalmente virtuais (por meio de ativos, inovações financeiras e modelos de negociação antes inviáveis sem o auxílio de tais recursos tecnológicos), uma leitura direcionada à compreensão do estado da arte tecnológico dos mercados financeiros em nosso tempo pode amparar e trazer novos elementos à importante discussão a respeito da complexidade e sofisticação da economia capitalista (em suas múltiplas dimensões), bem como da crescente ampliação do fosso entre os mercados e as necessidades materiais mais prementes da vida social.
* Edemilson Paraná, pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), mestre e doutorando em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), é autor do livro A Finança Digitalizada: capitalismo financeiro e revolução informacional (Ed. Insular, 2016).
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