Por: Ricardo Coelho dos Santos
Quando se conta para os jovens como eram os anos envolvidos pela década de 1970, eles acham absurdamente improvável que as coisas tivessem sido assim. A descrição do regime político da época parece um roteiro de uma mente desvairada que exagera nos argumentos, apimentando uma trama que poderia até ter passado na Idade Média ou numa dessas ditaduras observadas pelas nações livres com cuidado. Mas isso nunca poderia ter acontecido no Brasil.
Mas, aconteceu sim! Inacreditavelmente aconteceu aqui!
Recentemente, renovei a minha Carteira de Identidade; a antiga, vinha com um erro. Me perguntaram porque eu não tinha pedido para corrigir na época. Bom… Só por não ter gostado da minha assinatura, o policial que me atendera deu-me um berro e me ameaçou de prisão! Assim, consigo resumir as coisas! Não posso deixar de aproveitar e elogiar o excelente trabalho que a Polícia Civil realiza hoje em identificação. Perto do que era nos anos setenta…. Não há nem como comparar!
E como eram as manifestações artísticas daquela época? Como os artistas dos anos setenta expressaram seus inconformismos e apresentaram suas críticas de modo não sofrerem as represálias que vinham até pelo simples fato de se falar uma língua estrangeira nas ruas?
Podemos dizer que eram complicadas, sutis e delicadas. Como gerar esse tipo de arte é algo nada fácil de ser feito, eis que surgiram os artistas mais geniais no nosso país, ainda hoje cultuados e com muita razão: Chico Buarque, Caetano Veloso, Milton Nascimento e Gilberto Gil não ficaram famosos à toa. Suas mensagens eram veladas em forma de metáforas que somente anos depois tiveram seus significados revelados.
A coisa ficou mais complicada quando se tratava de cinema. O filme, em geral, é considerado injustamente por muitos como uma arte menor, pois envolve algo além de uma expressão artística. É uma indústria lucrativa, mas muito cara. Envolve, além de atores, cenários, locações, equipamentos, salários, marketing, propaganda e um terrível medo de não dar certo. Se um pintor falha num quadro, o problema é só dele. Mas um fracasso cinematográfico gera despesas astronômicas, desemprego, um volume imenso de críticas negativas dada à popularidade do cinema mais a desconfiança eterna sobre aquele diretor por parte de qualquer produtor ou instituição financeira que se prezem. Podemos citar aqui vários casos, mas não é o objeto desse texto. Deixemos isso para depois!
Entretanto, no Brasil, na nossa época referida, essa fórmula de medo deixou de existir, até mesmo para termos uma indústria de cinema. Por lei, toda sala de exibição de filmes era obrigada a apresentar todo filme nacional. Então, qualquer fita vagabunda do nosso país tinha exibição garantida! Isso causou o fechamento de cinemas ligados a igrejas e escolas.
Foram mudanças no cinema nacional! Começando a partir das próprias salas: os ingressos eram emitidos pela Casa da Moeda para melhor controle no acompanhamento da audiência. Também, os críticos de cinema nos jornais poderiam até falar mal de um Fellini, mas citar negativamente um filme produzido pela Boca do Lixo, em São Paulo, gerava em prisão, fechamento do jornal e outras represálias que, como foi dito, inimagináveis para os dias de hoje!
Então, para que se fazer um filme bem elaborado, se o vagabundo tinha venda garantida?
E o que o governo queria que fossem apresentados nas películas nacionais? Simples: qualquer coisa que desviasse a atenção da política nacional.
Vamos ser frios e calculistas, deixando de lado as ideologias! A década de setenta foi de repressão, mas as coisas funcionavam. O governo era dono de todos os grandes empreendimentos, e esses geraram divisas. Grandes indústrias se instalaram num Brasil que, com tal garantia, perdera o medo de ser grande. Entretanto, os oposicionistas, mesmo com as represálias, não se calavam. Havia neles gente séria, mas, também, havia oportunistas esperando o gavião largar o frango. E se algo foi pouco tolerado pelos militares foram as críticas públicas. Então, a estratégia do governo foi de distrair a atenção do brasileiro enaltecendo o fato dele ser um vencedor tanto na parte industrial, com as grandes obras do porte da Transamazônica, Aracruz Celulose, Porto de Tubarão e o complexo da Embratel em Itaboraí, RJ, como também no futebol, na música e nas nossas belezas tanto naturais como as das nossas mulheres. Bom, a pílula gerou a revolução sexual. Então, vamos aproveitar e escancarar de vez. Melhor um brasileiro hedonista do que um politicamente engajado.
O maior paradoxo é que o incentivo que o governo dava aos filmes de categorias e textos discutíveis era tirado com a forte atuação da censura. Não era raro se assistir filmes com cortes de cenas de mais de minutos. A nudez enaltecida das mulheres tinha de ser rápida e nunca frontal. Havia filmes que gastavam os cento e vinte minutos só para celebrar a quebra de virgindade de uma personagem. E esses filmes, censurados e tudo o mais, eram obrigados a serem exibidos!
A lei mudou. Passou-se a ter obrigatoriedade de se exibir os filmes nacionais por um tempo mínimo determinado. E, assim, Os Trapalhões salvaram centenas de salas de cinema no Brasil nos anos oitenta, quando essa lei ainda perdurava. As famílias voltaram ao cinema para assistirem a filmes nacionais!
Não podemos generalizar afirmando que todo filme brasileiro era ruim. Nem podemos dizer que só o Brasil fazia filmes de baixa qualidade. Grande parte dos filmes estrangeiros também foram sofríveis, mas se salvaram algumas obras primas e alguns clássicos eternos surgiram na época. Vamos conferir:
Como Era Gostoso o Meu Francês – esse nome horroroso é de um filme de 1971 de Nelson Pereira dos Santos, com Arduino Colassanti. Uma adaptação do relato de sofrimento do alemão Hans Staden, aqui adaptado para ser o francês do título. A liberação do filme, devido a cenas de nudez e antropofagia, foi algo complicado, e o título estava mais alinhado ao modelo de povo brasileiro desejado na época do que à importância da obra de Staden, autor do primeiro livro escrito sobre o Brasil.
Quem Tem Medo de Lobisomem? – terror de baixa categoria, sob a direção de Reginaldo Faria. Sem pé nem cabeça, sem mostrar diretamente o que a obra quis dizer, passa a ser referência quando se analisa a sutileza do diretor e também roteirista. O filme, de 1975, retratava exatamente o regime militar, colocado aqui metaforicamente como o monstro místico.
Dona Flor e Seus Dois Maridos – baseado na obra de Jorge Amado, dirigido por Bruno Barreto, foi um filme de 1976 muito bom, que quebrou recordes de bilheteria com direito a refilmagem norte-americana. No nosso filme, podemos ver o monstruoso talento de José Wilker contracenando com os bons atores brasileiros Sônia Braga, Mauro Mendonça e Nelson Xavier, embalados pela música “O Que Será (À Flor da Terra)”, de Chico Buarque.
Iracema, a Virgem dos Lábios de Mel – filme de Carlos Coimbra de 1979, com Helena Ramos e o ator português Tony Correia, um galã de novelas nacionais. Baseado, muito de longe, na obra de José de Alencar, é um exemplo clássico da gestão cinematográfica da época. Foi um filme mais para pornográfico que romântico, com a bela Iracema gozando plena saúde com uma imensa marca de vacinação contra varíola no braço e vestida do jeito que a rapaziada gosta. A censura atacou, mas entraram com recursos alegando que era uma obra literária obrigatória nas escolas e, assim, o filme foi liberado.
Bye Bye Brasil – considerado por muitos um dos melhores filmes já feitos, brasileiros ou não, foi uma obra-prima de Cacá Diegues, que dirigiu e assinou o roteiro. O filme é de 1979 com atuações fantásticas e irrepreensíveis de José Wilker, Betty Faria e Fábio Júnior, no único papel realmente bom na sua carreira, com uma rápida aparição do excelente Jofre Soares. Chico Buarque também nos brinda na trilha sonora com a canção-título.
Referências:
Filmow em https://filmow.com/listas/grandes-filmes-brasileiros-dos-anos-70-l11928/
Wikipédia