Por Ítalo Braga Castro
“O veneno está na mesa” é o nome de um documentário lançado em 2011 de autoria do cineasta Silvio Tendler (disponível em: https://youtu.be/V9KJyR9hxJI). No filme as entranhas do agronegócio são expostas com uma boa dose de realidade aliada a imagens e depoimentos chocantes dos efeitos danosos produzidos pelo uso de agrotóxicos sobre a saúde humana e ambiental. Informações importantes sobre o uso de defensivos agrícolas no Brasil são apresentados no documentário atestando por exemplo, que cada brasileiro consome em média 5,2 litros de agrotóxicos por ano. Nesse sentido, a obra mostra dados da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) dando conta que em 2009, 29% das amostras (frutas e verduras) analisadas quanto a presença de resíduos de agrotóxicos apresentou resultados insatisfatórios, ou seja, poderiam gerar danos potenciais à saúde alimentar da população.
O agronegócio brasileiro utiliza legalmente diversos praguicidas que a muito foram proibidos em outros países por serem comprovadamente prejudiciais à saúde e ao ambiente. Além disso, a ANVISA tem detectado em frutas e verduras resíduos de compostos cujo o uso no Brasil é ilegal, e que provavelmente entram no pais pelas nossas vastas fronteiras desprotegidas. Essa situação coloca a população em um grave dilema alimentar. Consumir vegetais frescos no lugar de alimentos ultraprocessados, conforme orienta o Guia alimentar para a população brasileira, ou se expor através da dieta a substâncias químicas perigosas?
Denominados praguicidas, pesticidas, biocidas, agroquímicos, produtos fitossanitários, defensivos agrícolas ou ainda agrotóxicos essas substâncias contêm compostos sintéticos ou naturais que tem a finalidade de matar ou repelir pragas indesejáveis. Dependendo das suas características químicas, modo de aplicação e das particularidades de cada local, essas substâncias podem se espalhar pelo ambiente contaminando água, solo, alimentos e pessoas. Para se ter uma ideia da mobilidade desses compostos na natureza, existem vários registros feitos por pesquisadores brasileiros e estrangeiros da ocorrência desses praguicidas em animais que vivem na Antártica (onde por razões óbvias não existe agricultura) e no leite materno. Portanto, as consequências do uso de defensivos agrícolas são globais e difíceis de serem relacionas ao seu uso local.
Entretanto, evidências incontestáveis de que a exposição a esses resíduos pode levar ao desenvolvimento de canceres, alterações hormonais, más formações fetais e outras formas de intoxicação estão disponíveis em abundancia na literatura científica.
Sobre esse assunto, a Dra. Larissa Mies Bombardi publicou esse ano um “Pequeno Ensaio cartográfico sobre o uso de agrotóxicos no Brasil” (disponível em: http://www. larissabombardi.blog.br/#!artigos/euizr) onde mapas mostrando o quantitativo de pessoas vítimas de intoxicação por esses produtos são mostrados. Pessoalmente, achei os dados assustadores!
Nesse ponto, é importante ponderar que a agricultura mundial não seria capaz de prover alimentação aos mais de 7 bilhões de habitantes da aldeia global, não fosse o uso desses compostos. Portanto, conviver com esse risco químico é ainda, praticamente inevitável para esmagadora maioria da população. Sobretudo para os que não podem pagar pela agricultura orgânica. Por outro lado, por se tratarem de substâncias químicas que apresentam risco potencial para saúde da população e do ambiente, regras devem existir para proteger e normatizar sua utilização, minimizando sempre que possível seus efeitos prejudiciais.
No Brasil, a utilização de agrotóxicos deve ser previamente avaliada pelo Ministério da Agricultura (MAPA), IBAMA e ANVISA. Cada um desses órgãos realiza avaliações independentes do produto, buscando verificar sua eficiência, potencial poluidor e risco toxicológico (incluindo, em quais condições o seu uso é seguro). Dessa forma, um determinado produto pode ter uso autorizado para agroindústria, mas ser proibido em ambientes urbanos e/ou domiciliares. De forma similar, algumas formas de aplicação de agrotóxicos também são reguladas pela legislação brasileira, tendo em vista a potencialização de riscos inerentes. Por exemplo, a pulverização aérea (empregando aeronaves) de lavouras é proibida no Brasil em áreas localizadas a menos de 500 metros de povoações, cidades, vilas, bairros e mananciais de captação de água para abastecimento e a menos de 250 metros de mananciais de água, moradias isoladas e agrupamentos de animais.
A pulverização aérea promove a dispersão de praguicidas por vastas áreas e devido ao elevado percentual de perda durante o procedimento (em alguns casos 80%), a quantidade de produtos utilizados costuma ser muito maior em comparação a outras formas de aplicação. Consequentemente, essa técnica favorece a mobilidade e a distribuição dos praguicidas pelo ambiente atingindo frequentemente áreas distantes dos locais de aplicação. Existem evidencias que a pulverização aérea em zonas rurais tem sido responsável pela perda da biodiversidade, contaminação ambiental em larga escala, intoxicação de animais e danos à saúde humana. Por esses motivos, essa forma de utilização de agrotóxicos foi abolida em toda a Comunidade Europeia.
Conforme mencionado anteriormente, no Brasil o uso de aviões na aplicação de defensivos agrícolas sobre lavouras é ainda permitido em determinadas situações. Não fosse o cenário apresentado até aqui aterrador, recebeu recentemente sanção presidencial a Lei nº 13.301/2016 que visa permitir a realização de um estudo piloto usando pulverização aérea de inseticidas em áreas urbanas. Motivo? Combater o Aedes aegypt, vetor dos vírus responsáveis por causar a dengue, a chikungunya e a zika. O retrocesso representado por essa ação é uma calamidade de proporções avassaladoras para saúde humana e ambiental.
Imaginem praças, parques, escolas, creches, hospitais e reservatórios de água recebendo por via aérea substâncias como malation, fenitrotiona, lambda cialotrina e nalede. Tratam-se de agroquímicos com conhecidos efeitos toxicológicos, possivelmente cancerígenos e que já protagonizaram casos de intoxicação coletiva de pessoas no Brasil e no exterior. Além disso, a medida contraria a reiteradas recomendações de vários setores da sociedade assim como técnicos e pesquisadores com larga experiência no assunto e que atestaram ser altamente perigosa. Adicionalmente, vários estudos indicam que o combate a vetores por meio do uso de inseticidas é ineficaz visto que induz resistência nos insetos ao longo de poucos anos, haja visto que mesmo após décadas de uso do “fumacê” a infestação nacional por mosquitos não recuou significativamente. Para ajudar o leitor a entender porque uma medida tecnicamente ineficiente e potencialmente perigosa está sendo adotada pelo governo federal devo adicionar algumas informações essenciais: A proposta teve origem no Sindicato de Aviação Agrícola e foi lançada coincidentemente no mesmo ano em que a venda de agrotóxicos recuou em 20%. Some-se a isso a pressão que algumas lideranças políticas (entenda-se a bancada ruralista) exercem sobre órgãos reguladores como a ANVISA, aliado a medo da população de contrair as famigeradas doenças transmitidas pelo mosquito. Nesse ponto, considerando que a discussão descambou para um aspecto político, me permito exprimir uma opinião: Isso sim é elevar o populismo a um nível profissional de oportunismo!!!
O resultado, é que a exposição aos agrotóxicos pode ser ainda pior que o demonstrado no filme “O Veneno está na mesa” que já tem um a segunda versão lançada em 2014. Aparentemente daremos motivos para Silvio Tendler produzir seu terceiro documentário que seguindo o padrão das obras anteriores deve se chamar “O Veneno está no ar”.
*Biólogo, Doutor em Oceanografia, Professor do Instituto do Mar da
Universidade Federal de São Paulo.
Não há comentários postados até o momento. Seja o primeiro!