Doutor em economia pela Universidade de Stanford, João Manuel Pinho de Mello fez uma ginástica inconvincente em artigo publicado na Folha de São Paulo, no dia 06 de outubro, intitulado Pagar juros é escolha racional, para defender a exclusão do juro da dívida pública do teto de gastos proposto pelo governo e sua aprovação para as demais despesas. Entre os argumentos que apresenta apenas dois são razoáveis, com os demais não passando de engodo para se vender o peixe do mercado financeiro.
A primeira advertência que se pode considerar razoável, mas que qualquer cidadão antenado no mundo das finanças conhece, é que o juro nominal é composto por duas frações: pela inflação, que apenas recompõe o poder de compra do dinheiro, e pelo juro real, que de fato remunera sua cessão. A segunda, de que colocar um teto para os juros implica manietar a política monetária, restringindo a ação do governo para enfrentar tormentas econômicas, medida que pode se tornar ainda mais onerosa.
Em condições normais de funcionamento da economia, não restam dúvidas de que o juro real deve ser positivo para estimular a poupança e até mesmo refrear o consumo, mas não é bem o que está acontecendo em boa parte principalmente dos países desenvolvidos que têm se debatido com a fraqueza da demanda desde a crise do subprime, em 2008/2009, e que vêm operando com juros negativos, o que ele não menciona. Limitar a taxa de juros em ambientes inflacionários também nunca se revelou uma boa estratégia pela desintermediação financeira que pode provocar e por obstruir os canais pelos quais o dinheiro pode chegar às mãos de quem dele precisa, a exemplo do que ocorreu no Brasil com a lei da usura de 1933.
O artigo de Mello, a par dessas observações, peca por associar fortemente o juro real às necessidades de financiamento do governo e afirmar que este é determinado pelo mercado, sendo o custo por este cobrado para cobrir seus desequilíbrios. Nos últimos doze meses fechados em setembro, a inflação chegou a 8,48%, com tendência de queda. Como a Selic está em 14,25%, isso significa, na atualidade, um juro real próximo de 4%, descontado o imposto de renda que incide sobre aplicações financeiras, figurando como a mais alta do mundo, posição que vem mantendo neste ranking desde 2013. Isso, apesar do Brasil registrar uma relação dívida/PIB inferior à de muitos países que operam com juros reais negativos e, de maneira geral, com um grau de risco inferior ao de muitos outros.
O elevado nível dos juros nominais no Brasil – e também dos reais – deve-se, ao contrário do que argumenta Mello, a uma política deliberada e equivocada do governo de combater inimigos que ou deixaram de existir ou já se encontram progressivamente enfraquecidos, e muito pouco com a imposição do mercado, mesmo porque essa decisão cabe ao COPOM. No primeiro caso, pode-se apontar a questão do déficit externo, que caiu de 4% do PIB, em 2014, para 1,46%, em setembro deste ano, no acumulado de doze meses, com reservas externas de US$ 376 bilhões e ingresso de capitais que dispensam taxas de juros mais elevadas.
No segundo, a forte recessão que vem se encarregando de promover uma não menos forte desaceleração da inflação ao continuar sugando as forças já enfraquecidas da demanda de consumo, com o aumento progressivo do desemprego, que já bateu na casa de 11,8%, e a queda dos níveis salariais. Qualquer redução da Selic em dois ou três pontos percentuais, nessas condições, pouco modificaria essa realidade, embora possa se traduzir em algum alento para a atividade econômica, e, da mesma forma, em nada deverá alterar a disposição dos investidores em continuar financiando o governo, mesmo porque a taxa de juro real ainda continuará significativa com a inflação em queda.
Se caminhasse nessa direção mais racional, o governo estaria reduzindo consideravelmente o seu déficit nominal, que é de fato o que interessa, e reduzindo a velocidade de crescimento da relação dívida bruta/PIB, que já atingiu o patamar de 70% e que tanto atemoriza os investidores, sem ter de sacrificar na dimensão pretendida algumas das políticas sociais mais nobres. Mas, na análise de Mello, este é o sacrifício a pagar por políticas populistas que foram implementadas nos últimos governos.
Se o objetivo do artigo era o de justificar a exclusão dos juros do teto dos gastos para defender os interesses do capital financeiro, existem outros argumentos técnicos que poderiam ser utilizados, mesmo que questionáveis. Mas eximir o governo de políticas equivocadas quanto à manutenção das elevadas taxas de juros, quando essas são desnecessárias, e exigir dos economistas uma “lição de humildade” para reconhecer que o juro real elevado é consequência apenas de políticas insanas de gastança, significa divorciar-se de qualquer bom senso em termos de matéria econômica, quando a maior responsabilidade pelo desequilíbrio fiscal vem exatamente dos juros desnecessariamente elevados que a sociedade paga.
*Doutor em economia pela Unicamp, membro da Plataforma de Política Social, colaborador do Brasil Debate e Debates em Rede, e autor, entre outros, do livro “Política econômica, estagnação e crise mundial: Brasil, 1980-2010”.
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