Por Helder Gomes*
Novamente um final de ano com distribuição de sacos de maldades para as classes trabalhadoras. Mas, como sempre, muita gente prefere realimentar a crença no Papai Noel, afirmando a necessidade de ajustes, para que se possa projetar um mar de rosas a partir do natal do ano seguinte. Esse papo furado vem se repetindo ano a ano.
Há algum tempo vivemos como que assistindo filmes estrelados por Jason Statham, cujos volume de violência e festival de trapaças procuram fazer com que torçamos passivamente pelo bandido com aparência de bom moço. Ouvimos insistentemente que, de alguma forma, todo mundo rouba e mata, e somos convidados para tramas de enredo envolvente na defesa de uma tal ética do crime.
Esse parece ser o principal sintoma de que estamos num daqueles momentos críticos, de grande depressão econômica. Tempo em que a lógica manda cada um cuidar de si, enquanto os governantes de plantão procuram garantir o que interessa de fato: a acumulação de capital, a partir da redistribuição do fundo público e da utilização de instrumentos draconianos de transferência de riqueza via incentivos fiscais e financeiros, endividamento público, entre tantos outros.
Assim, ao contrário do que procuram mostrar as teses mais românticas sobre o país das maravilhas, o Estado não foi constituído para garantir o bem-estar geral da nação. Todas as medidas governamentais, que procuram receitar alguma forma de administração das crises econômicas, alardeiam a seu modo a mesma cantilena: a necessidade de retomada da confiança empresarial, sem a qual não existe possibilidade de estimular novos investimentos. O que muda de um receituário a outro é o tamanho e a qualidade da intervenção do Estado em cada uma de suas áreas operacionais.
Estes são momentos em que não dá mais para esconder a realidade dada a sua flagrante capacidade de destruição seletiva. As crises capitalistas são momentos de escolher entre quem vai quebrar e quem vai sobreviver, a partir de uma disputa pouco cordial pela apropriação dos frutos de quem trabalha de fato. O êxito depende, no fundamental, da eficiência em convencer os parceiros derrotados de que perderam mas combateram o bom combate e, também, as massas trabalhadoras, que precisam se dispor a trabalhar mais por menos e a se contentar com ações assistencialistas que não estarão disponíveis para todas as famílias. Afinal, não se faz omelete sem quebrar ovos.
É disso que se trata: estamos em guerra. As tensões tendem a se acirrar no Brasil atual, porque a política de conciliação adotada desde o Plano Real perdeu totalmente a sua eficácia. Agora é hora das elites jogarem sujo e, explicitamente, utilizar todas as armas que têm a seu dispor para garantir o cumprimento da função brasileira nos padrões que a história do capitalismo lhe reservou até aqui. Mesmo que, para isso, seja preciso utilizar formas violentas de produção e de transferência de riquezas para as grandes potências mundiais.
É hora do desfazer-se das ilusões. Entretanto, ainda há quem acredite no engodo de uma Constituição Cidadã e na anedota do Brasil potência. Mas, da mesma forma que se desnudou a ideologia militar dos tempos de chumbo, de que éramos uma ilha de tranquilidade em mar revolto, em plena tensão mundial, acaba de cair por terra a paródia de que a crise avassaladora chegara aqui apenas como uma marolinha.
O pior dos mundos seria continuarmos envolvidos passivamente nessas tramas macabras. A corrupção generalizada e o saqueio dos cofres públicos por meio da ampliação dos privilégios às autoridades dos Três Poderes da República devem ser entendidos como efetivamente são. Formas patrimonialistas de parte das elites brasileiras disputarem entre si as migalhas deixadas aqui pelo modelo de expropriação imperialista, enquanto uma outra parte é melhor premiada, aparecendo na Forbes e tal, exatamente por cumprir rigorosamente a função executiva, empresarial, de transferir nosso patrimônio natural a baixo custo para os donos do mundo.
A reprodução em escala ampliada do modelo de captura da economia brasileira ocorreu especialmente nos últimos 25 anos. Mais precisamente, com a implantação do Plano Real e com a sequência de governos conciliadores, promoveram um intensivo processo de desnacionalização da economia brasileira, cujos efeitos estão explícitos na explosão das remessas de lucros e dividendos para o exterior, a partir de 2004, resultado das privatizações e do estímulo governamental à fusão e à aquisição de empresas pelo capital estrangeiro. Óbvio, não se trata apenas de transferência de patrimônio, mas, também do deslocamento dos centros de decisão dessas empresas para as grandes potências, alienando-se, assim, a própria soberania na projeção do futuro do parque produtivo nacional.
Ao mesmo tempo, as dívidas do Estado, das empresas e das famílias trabalhadoras atingiram patamares assustadores, inviabilizando movimentos expansionistas, por mais que os governos anteriores tenham tentado estimular o consumo e os investimentos, especialmente com isenções de impostos e das contribuições empresariais à previdência.
As elites brasileiras resolveram arriscar e jogar pesado, de imediato. No entanto, não se trata apenas de aplicar uma política de austeridade seletiva, para garantir o redirecionamento do fundo público por meio da desvinculação dos recursos da saúde e da educação, o que por si já teria grandes impactos redistributivos de viés concentrador. Trata-se, entre outras medidas, da alienação do que resta de patrimônio empresarial sobre o poder do Estado, privatizando e desregulando, a fim de abrir oportunidades para o capital, em crise, explorar segmentos até então sobre o controle estatal.
Trata-se, também, de revigorar a violência do Estado, para garantir a concentração fundiária no campo e nas cidades, expulsando pequenos posseiros, enquanto os grandes proprietários estão em franco processo de alienação das terras urbanas e rurais em favor de um novo processo fusões e aquisições, o que implicará em maior internacionalização e consequente desnacionalização patrimonial e das decisões sobre o uso da terra e do subsolo no Brasil.
Além disso, colocar esse projeto de ampliação da subalternidade brasileira em curso exige alterações drásticas no modelo precário de participação. No curto prazo, fica cada vez mais nítida a orientação geral para o monitoramento e a repressão aos movimentos contestatórios. A médio e longo prazos, no entanto, está em curso maior rigidez no sistema nacional de ensino que, aos poucos, tem sido moldado a migrar de parâmetros curriculares mais abrangentes para currículos mais limitados e regulados, num franco processo de construção de uma escola adestradora, muito longe das perspectivas de emancipação.
A tensão está no ar. É de se esperar que pressões das bases populares mudem o comportamento geral de suas representações e que, em seu conjunto, sejam retomados movimentos mais contundentes de contestação, em substituição às reuniões de gabinetes e às pautas reivindicatórias recuadas. Parece, inclusive que o aparato policial militar que vem sendo testado no combate às manifestações pacíficas de estudantes e professores/as, sinalizam o que as elites e os governos estão esperando pela frente, dado o uso flagrantemente desproporcional da violência contra ativistas desarmados. É como se fosse um ensaio geral.
Estão arriscando todas as fichas para tudo continuar como antes. Estão arriscando, inclusive, a repetição do famoso Baile da Ilha Fiscal… Mas, mesmo retirando disciplinas das grades curriculares, na perspectiva de guiar o curso da história, esta segue sua trajetória a seu modo, totalmente descontrolada.
* Economista, Professor, Doutor em Política Social.
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