Por Neide César Vargas*
O Orçamento Público Federal no Brasil tem sido regido, desde a Constituição de 1988, por duas lógicas antagônicas entre si: a primeira, fruto das mobilizações sociais que eclodiram ao longo dos 80s, assentada na ideia do orçamento como um instrumento democrático de planejamento de médio/longo prazo, sinalizador das prioridades da intervenção pública e capaz de abrir algum espaço para políticas de bem estar social; a segunda, gradualmente implementada desde 1990, que considera o orçamento como um instrumento de curto prazo, localizando no longo prazo apenas a capacidade do Governo de honrar as despesas financeiras de dívida pré-existente.
A primeira lógica prioriza o Plano Plurianual de Aplicações (PPA), o equivalente ao plano de governo, os mecanismos de controle social e a configuração de um Orçamento de Seguridade Social específico, financiado com receitas de contribuições sociais, voltado para a Previdência Social (RGPS), a Saúde e a Assistência Social. Também incorpora o fortalecimento da Educação por meio de vinculação de receitas tributárias, consagrada desde 1983 e reafirmada em 1988.
O ideário da Constituição de 1988, porém, nunca foi plenamente realizado. Os mecanismos de controle social vigoram de forma precária e parcial, o orçamento específico de Seguridade Social virou letra morta e os gastos federais com Educação, por exemplo, só sofreram elevação perceptível após 2007. A despeito dessa elevação, em momento algum, entre 1965/2010, o gasto federal com educação ultrapassou 2% do PIB. De igual modo, a saúde só ultrapassou suavemente esse mesmo teto no Governo Sarney.
Números mais recentes, de 2011/2014, mostram que os gastos com educação, saúde e assistência social ocuparam em média 10,8% do orçamento executado, a previdência 24%, nesta última embutido cerca de 7% com despesas previdenciárias do funcionalismo federal – que não faz parte dos gastos constitucionais com a Seguridade Social. Afora o gasto com Previdência Social, que necessita de uma análise mais especifica para ser melhor entendida, não há como concluir que tenha havido gastança em políticas sociais no Brasil do pós Constituinte. Houve uma certa elevação de gastos nesse campo denotada pelo ainda baixo compromisso orçamentário com os mesmos. Isso nos leva a intuir que os discursos que reputam aos gastos sociais a responsabilidade dos problemas fiscais/financeiros atuais têm ressonância social apenas porque parcela dos formadores de opinião neste país nunca os viram de fato como uma prioridade.
Esse posicionamento hegemônico tem sustentado politicamente a segunda lógica, a qual os economistas denominam Responsabilidade Fiscal ou de Sustentabilidade Financeira da dívida, coerente com um modelo econômico e social que reputa à esfera privada e à liberalização dos mercados as respostas para o país. Não obstante, a despeito de envolverem conceitos que evocam um uso providencial de recursos públicos, não é o que tais ideias têm viabilizado na prática.
Inicialmente resultaram na gestão conjunta do Orçamento de Seguridade com o Orçamento Fiscal, ao que se agregaram mecanismos de desvinculação de receita capazes de retirar das políticas sociais 20% de seus recursos, ano após ano, desde 1993. Apenas em 2015, como uma dentre as várias estratégias de boicote orçamentário adotadas pelo Congresso, a DRU não foi renovada, sendo imediatamente aprovada e majorada para 30% assim que o governo Temer assumiu interinamente. O objetivo desse mecanismo era dar margem de manobra ao governo Federal para utilizar recursos das políticas sociais visando sustentar superávits primários.
Gradualmente, privilegiando a subordinação do orçamento às metas de superávit fiscal (que são economias que o governo faz nas suas contas primárias para pagar despesas financeiras), as medidas nessa segunda lógica tem esvaziado o papel orientador do PPA e do planejamento de longo prazo. A Lei de Responsabilidade Fiscal é a sua síntese, envolvendo mecanismos de restrição fiscais e financeiros que trazem a supremacia da sustentabilidade financeira sobre a lógica do orçamento, exigindo relatórios de controle de curto prazo cujo objetivo estrito é garantir a meta fiscal.
Desde o Plano Real a orientação do orçamento para a sustentabilidade da dívida combinou-se com reformas no Estado brasileiro, voltadas para privatização e redução de sua atuação produtiva e social, orientando-se para a promoção do superávit primário notadamente desde 1999. Ela foi suavemente reduzida a partir de 2009, com metas de superávit menores e estratagemas contábeis voltados para flexibilizá-las. Não obstante, o comprometimento orçamentário com despesas financeiras, pagas ou roladas por meio de novas dívidas, não deixou de ser elevado. No auge dessas flexibilizações (governo Dilma), a parcela média do orçamento destinado a despesas financeiras alcançou 56% do total, recursos da ordem de R$ 1 trilhão de reais.
Por outro lado, a despeito dessa estratégia orçamentária flexibilizadora permitir certa elevação dos gastos sociais, não foram estes os maiores beneficiários da mesma. A fracassada e cara política desenvolvimentista de Dilma abocanhou parcelas expressivas de recursos públicos, via crédito subsidiado do BNDES e demais instituições financeiras federais, com pesados impactos sobre o orçamento federal; via desonerações fiscais que até a atualidade retiram recursos do caixa do governo (estimados atualmente em R$ 224 bilhões). Bem sucedida apenas entre 2009 e 2010 tal política gerou pesada herança de endividamento público e perda de receitas sem impacto relevante sobre o crescimento da economia. Ocorre em concomitância com um aprofundamento da crise internacional manifesta na queda dos preços de importantes ‘commodities’ (petróleo, soja, minério, etc). Somando-se a tal quadro deflagrou-se uma crise política no Brasil, paralizando o país e o processo orçamentário ao longo de 2015 e início de 2016.
A confluência desses fatores desfavoráveis impactou severamente nas contas públicas, especialmente nas receitas, levando aos déficits primários de 2014 e 2015. O aprofundamento da crise, intencional ou não, criou as condições políticas para um enquadramento cabal e perpétuo à lógica da sustentabilidade financeira num turbilhão de medidas que resultam no desmonte dos ainda frágeis mecanismos sociais e democráticos relativos ao orçamento público.
A principal dessas medidas é a Proposta de Emenda Constitucional n. 241. Ela adota como base de cálculo o ano de 2016 estabelecendo um teto global por poderes e órgãos dos gastos primários corrigidos pela inflação.
A luz do que foi dito previamente o sentido dessa medida é submeter o orçamento a uma única lógica: a da sustentabilidade financeira da dívida pública. A despeito da beleza dos modelos econômicos que asseguram que isso trará o saneamento das contas públicas e as condições de crescimento da economia brasileira, o que de fato se pode assegurar, com base no que ocorreu desde o inicio dos anos 90, é que os gastos primários cairão, continuaremos com no mínimo a mesma carga tributária e eventuais excedentes serão utilizados para que o Estado honre suas crescentes despesas financeiras.
*Economista, professora doutora em Ciências Econômicas.
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