Conto I
Por Ricardo Coelho dos Santos*
O Decreto Real
Sua Majestade, o Rei, baixara o seguinte decreto:
“É dado a todo cidadão de Equinata o direito de, numa só vez, receber a quantia de C$ 1.500,00 (um mil e quinhentos caesas) com recursos provenientes do Tesouro Real”.
O povo ficara muito alegre.
Estive em Equinata e soube dessa notícia. O reino de Equinata é fácil de ser encontrado, mas é pouco conhecido. Numa das minhas viagens, vim a saber desse lugar lindo, maravilhoso de se ver, mas com características culturais tão diferentes das que estou acostumado que não sei se conseguiria viver bem lá.
Conversando com um cidadão, procurei saber sobre se ele se beneficiara do decreto. Ele respondeu que desistiu de ser beneficiado. Quis saber o porquê e ele me explicou.
Para começar, logo após o lançamento do decreto, houve uma reclamação geral de que somente uma parcela da população seria beneficiada. Essa quantia, que equivaleria a pouco mais que um salário médio de um trabalhador, daria alívio a somente aos mais pobres. Porém, para dez por cento da população, essa quantia seria irrisória, nada significativa. O rei, com esse decreto, estava prejudicando uma parte da população.
Mais tarde, um grupo de auditores especializados, contratados pelos Fidalgos da corte, descobriram uma falha terrível no decreto. Ali está escrito, em todas as letras, que a quantia deveria ser para “o cidadão de Equinata”. Para se sacar, portanto, era importante que cada pessoa provasse que era um cidadão. Porém, um tribunal questionou o significado da palavra, pois se estava descrito num dicionário de uma maneira e em outro dicionário de outra maneira, não havia, entretanto, na Constituição Equinatiana nenhuma definição do termo.
Determinou-se que o benefício seria suspenso até que o termo fosse suficientemente definido. Foi uma batalha jurídica, pois oposicionistas do rei queriam que os presos fossem enquadrados como cidadãos, os sindicatos patronais queriam excluir os aposentados da categoria e os sindicatos dos trabalhadores exigiam que todo aquele que ocupasse um cargo gerencial na empresa não recebesse o benefício, solicitando que a lei fosse mudada para que os contemplados fossem os “cidadãos laborais”, que seriam aqueles não representariam os patrões de maneira alguma.
Depois de muita discussão, concluiu-se que cidadão era aquele que possuísse uma carteira de contribuinte ao Imposto de Renda. Depois de mais de um ano de manifestações, greves e outros protestos, acabou se aceitando o termo finalizado.
Entretanto, a entrega dos benefícios não poderia mais ser automática. O portador da carteira de contribuinte não poderia mais sacar imediatamente o benefício por causa da demora do saque em relação à data de promulgação da lei. Ele teria que não só ter a carteira, mas entrar com um recurso nos tribunais para o saque do benefício. Várias Despachadorias foram criadas a partir da nobreza preocupada com os direitos dos cidadãos. Devido aos custos legais, cada cidadão deveria abrir mão de 20% do benefício mais custas extras advocatícias que custavam entre C$ 300,00 e C$ 500,00. Ou seja, o cidadão receberia qualquer coisa entre C$ 700,00 e C$ 900,00.
Por depender dos tribunais, o tempo para o cidadão receber o benefício passou a demorar de cinco meses a um ano. Ou mais. As férias jurídicas nesse estranho país duram entre o Natal e a Paixão de Cristo, sendo que os juízes possuem ainda o direito de ter um mês de repouso adicional todos os anos.
Achei isso tudo horrível. Perguntei ao cidadão meu conhecido como o rei agiria sobre tanta dificuldade de aplicação da sua lei, uma vez a parte do tesouro que ele abrira mão estava intocada. Ele respondeu que, para o rei, todo o dinheiro já tinha saído no dia seguinte do decreto, indo para um fundo criado pelo Clube dos Fidalgos, uma entidade fechada representativa do povo. O dinheiro estava num banco gerando juros enquanto não houver totalização do seu saque. Com as demoras processuais, os juros estão gerando benefícios a uma entidade séria que luta pelos direitos do cidadão, evitando que a monarquia se tornasse absolutista. O Clube dos Fidalgos foi quem propôs a lei que criou as Despachadorias que permitiam acesso dos cidadãos aos benefícios. Mesmo sendo membros do Clube, os proprietários das Despachadorias deveriam pagar uma cota de participação para cada caso julgado. Os Tribunais, uma vez tratando de processos já determinados pelo Rei, deveriam também pagar uma cota. O cidadão não pagaria, pois, uma vez que ele abre mão de uma parcela, a parte a ser paga tanto pelos Despachantes como pelos Tribunais já estariam contidos na cota que ele abre mão. Um benefício a seu favor!
O meu conhecido está nessa luta há dois anos. A juíza do seu caso achou que ele não queria sua parte por direito, mas por desejar “subtrair dos recursos reais através de uma ação longe de ser digna de um cidadão, sendo mais um ato de usura” e determinou a sua prisão. Ele teve de pagar uma fiança de C$ 10.000,00 e atualmente está num processo complicado para limpar seu nome, pois, a ficha suja o enche de vergonha.
Reino muito estranho esse. Por essa e por outras, eu o visito, mas logo fujo de volta ao Brasil, antes de ter de provar que sou estrangeiro, e tal palavra não estivesse definida na Constituição…
* Engenheiro e Escritor.