Por Helder Gomes*
A tática oficial tem sido reproduzir mentiras continuamente até torná-las algo em que as pessoas passem a acreditar. O ministro Meirelles e seus aliados no Parlamento e na mídia proprietária procuram repetir à exaustão que as privatizações e o congelamento de gastos sociais projetadas para os próximos anos reduziriam a dívida pública, permitindo a diminuição das taxas de juros e a retomada da confiança empresarial na política econômica do governo federal.
Essa cantilena não tem nada de original. Trata-se de café requentado, igual ao que foi empurrado goela abaixo quando da implantação do Plano Real, há mais de duas décadas. Naquele momento, qualquer economista com uma formação razoável sabia que a estabilização monetária, ancorada na paridade cambial, exigiria um grande volume de reservas em dólares, cujo receituário repetiria a política do Delfim Netto nos anos de chumbo: manter as taxas de juros internas em patamares elevados, para motivar o empresariado a tomar empréstimos externos em dólares. Explico melhor.
Apesar do lenga-lenga, retirado das páginas amareladas dos manuais de macroeconomia, de que a manutenção de altas taxas de juros seria a única forma de controlar a inflação, até economistas mal formados conseguem perceber que, de fato, o governo federal mantém em níveis bastante elevados as taxas de juros sob sua responsabilidade, como forma de garantir um diferencial em relação às principais referências para os empréstimos externos (Libor, Prime Rate etc.), condição para atrair a entrada de dólares para fins especulativos no país.
O termo arbitragem internacional quer dizer exatamente isso. Credores estrangeiros estabelecem a cada momento por qual taxa de juros, acrescida de taxas de risco, estariam dispostos a abrir mão de comprar bônus do Tesouro dos Estados Unidos, por exemplo, para aplicar seus dólares no Brasil.
Para debater sobre isso, podemos partir de algumas indagações, que são continuamente empurradas para baixo do tapete pelos analistas de plantão. Por que a economia brasileira precisa manter mecanismos de atração de dólares em magnitude tão elevada? Quais mecanismos são utilizados sobre o pretexto de controle da inflação? Por que o Brasil experimentou um intensivo processo de privatização de empresas estatais e de serviços públicos, nas últimas décadas, ao mesmo tempo em que as dívidas públicas e privadas simplesmente explodiram?
Explodiram? Vários economistas argumentam que, comparado a outros países, o Brasil ainda possui margem para se endividar ainda mais, como se a dívida pública fosse gerada para pagar gastos primários do governo. Escondem, assim, os custos das tentativas de estabilização da inflação desde o Plano Real tanto em termos da armadilha especulativa resultante do crescimento acelerado das dívidas públicas e privadas, como no que tange à perda da soberania nacional sobre as decisões de investimento e sobre o controle futuro do parque produtivo interno.
Apenas no ajuste para implantação do Plano Real o governo federal elevou o estoque de títulos emitidos da dívida interna de R$ 4,99 bilhões, em dezembro de 1993, para algo em torno de R$ 56,00 bilhões, em julho de 1994. A política macroeconômica fundada na manutenção de altas taxas de juros internamente (para atrair divisas via conversão de dívida externa privada) resultou na explosão da dívida pública interna que, no final do governo Fernando Henrique Cardoso, resultou num total de títulos emitidos que alcançava mais de R$ 760 bilhões. O que isso significa?
Por mais que tenha cortado gastos e tenha privatizado boa parte das empresas estatais estratégicas, o governo gerava anualmente um superavit primário muito aquém do volume crescente de juros que deveria pagar. Portanto, os juros não pagos passavam a compor o estoque principal da dívida, sobre o qual incidiria novas taxas de juros todos os anos. Com isso, se o governo federal precisava de menos de R$ 1 bilhão às vésperas do plano real para pagar de juros da dívida interna, em 2002, ele precisou de mais de R$ 100 bilhões para cobrir essa conta. A cada ano, portanto, os cortes de gastos deviam ser maiores e, mesmo assim, nunca conseguiram gerar um superavit primário que se aproximasse do volume de juros devidos anualmente, o que tornou a armadilha da dívida uma trama de dinâmica própria, acumulando juros sobre juros. A manutenção da política monetária nos governos seguintes trouxe o volume de títulos emitidos pelo Tesouro Federal para mais de R$ 4 trilhões, em 2016. O volume de juros anuais que deveria ser pago ultrapassou a casa dos R$ 400 bilhões nos últimos anos. Não há corte de gastos primários, ou privatização generalizada, que pague esta conta. Isso todo mundo sabe, mas a política orientada pelo FMI guia o governo federal exatamente nessa direção.
Entretanto, olhando a coisa mais de perto percebe-se que não se trata apenas do início de um novo regime de ajustes macroeconômicos com o objetivo exclusivo de controle de preços e de recuperação da credibilidade na política econômica. O que está por trás de tudo isso é o envolvimento do Brasil num novo arranjo geopolítico, ante às disputas imperialistas motivadas pelo aprofundamento da crise econômica mundial, com os seguintes resultados: a) um intenso processo de especialização produtiva e tecnológica; b) uma nova fase de desnacionalização do patrimônio produtivo, dando continuidade à privatização do que resta de empresas e serviços públicos e à promoção governamental de fusões e aquisições de unidades privadas almejadas pelo capital estrangeiro.
A desnacionalização produtiva e o endividamento público são os horizontes da atual política macroeconômica no Brasil. O objetivo é manter a transferência de um grande volume de riqueza real, por meio da exportação de commodities, sem contrapartida da entrada líquida de divisas, o que exige a atração de dólares, cujo principal instrumento é a manutenção de um significativo diferencial entre as taxas de juros internas em relação às taxas praticadas nos mercados internacionais de moedas, elevando, assim, a dívida externa e a velocidade de sua conversão em dívida interna.
Por mera ignorância, por conveniência, ou por má-fé, algumas pessoas ajudam a divulgar aos quatro ventos que uma das heranças da estabilização monetária no Brasil seria o saldo de aproximadamente US$ 370 bilhões que o país ainda consegue manter em reservas internacionais. Não sabem, ou escondem, no entanto, que a manutenção deste volume de reservas é uma exigência das agências de classificação do risco-Brasil, como uma garantia contra ameaças bruscas do processo de especulação internacional. Mas, trata-se de uma garantia precária, uma vez que o passivo externo (de curto prazo) brasileiro ultrapassa o volume de reservas em mais de 3 vezes e cresce na mesma medida em que o país fica ainda mais frágil e vulnerável diante dos solavancos da crise econômica mundial.
Dessa forma, podemos concluir que a “ponte para o futuro” preconizada tende a consolidar de forma mais perene os laços do Brasil com seu estágio explicitamente colonial.
*Helder Gomes é Economista, Mestre em Economia e Doutor em Política Social.
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