Início de novembro e um ano da tragédia provocada pela Samarco. Com a marca da Aliança Rio Doce (ver http://aliancariodoce.weebly.com), fotógrafos e escritores reuniram-se na cidade de São Paulo para exporem seus trabalhos e criações com a mensagem direta e objetiva de não permitir que o tempo leve ao esquecimento do maior desastre ambiental do Brasil, tornando-se assim, o tempo, um elemento favorável aos que não tomaram as decisões corretas no momento necessário. Que essa memória da tragédia, quando vista do ponto de vista dos que sofreram, sirva também para alertar sempre outros que agora estão tomando decisões ou deveriam estar.
Debates em Rede para divulgar e homenagear esse grupo de pessoas engajadas e comprometidas com as causas do bem-estar coletivo, traz para seus leitores uma reprodução do que foi aquele significativo evento. Tal iniciativa só se tornou realidade por conta da colaboração generosa de Bruno Miranda que fez as mediações necessárias e também apresenta o evento conforme texto a seguir. Nossa convite é para curtir sem pressa as fotos e os textos e na medida do seu tempo em cada dia.
Bruno Miranda
A intenção dessa coletiva é desconstruir a narrativa hegemônica dos meios de comunicação, que insistem em rotular de “tragédia de Mariana” o maior crime ambiental praticado em solo brasileiro.
O epicentro do evento foi no distrito de Bento Rodrigues, mas a destruição e seus efeitos se espalharam para outras cidades de Minas Gerais como Resplendor e Governador Valadares, e do Espírito Santo como Colatina, Linhares (Regência) e Baixo Guandu. Além desses locais, outros 33 municípios foram atingidos de forma direta pelo acontecimento.
Localizar a tragédia na cidade mineira é uma estratégia discursiva para reduzir os seus impactos, a partir do não reconhecimento da dimensão de seus estragos. Por conta da visibilidade internacional atribuída a Mariana, recursos dos quatro cantos do planeta chegaram à histórica cidade mineira.
O conglomerado Samarco/Vale/BHP assistiu as famílias atingidas do município por conta da presença constante da mídia. E os outros 663km de extensão do rio até desembocar no mar capixaba? São mais de 500 mil pessoas atingidas de forma direta que perderam uma guerra na qual nem sabiam que iriam lutar. Pela distância que se encontravam de Bento Rodrigues, não imaginavam a possibilidade de se tornarem atingidas pela mineração.
Neste território, em contato direto com os rios, também estão a área protegida dos índios Krenak, três Unidades de Conservação de Proteção Integral e seis Unidades de Conservação de Uso Sustentável. Seria razoável pensar que a empresa responsável tivesse algum tipo de prejuízo nos primeiros dois trimestres do ano, por conta de indenizações e afins aos atingidos. Mas, depois de tudo isso, somente nos primeiros oito meses do ano, o lucro foi de R$$ 9,89 bilhoes de reais.
Diante dessa realidade, mais do que um único ensaio fotográfico, queremos apresentar por meio das fotos aqui reunidas, a necessidade do não esquecimento. Para tanto, direcionamos o foco aos atingidos, aqueles mantidos, pela crescente invisibilidade midiática, num universo lamacento: um perigo para a informação, para os indivíduos e cidades atingidas, e mais ainda para a sociedade, sujeita aos mandos e desmandos dos indicadores econômicos e da (des) informação.
Alguns escritores Participam da exposição com textos literários sobre o crime: Ana Laura Nahas, Leonencio Nossa e João Barreto, Antonio Prata Gregorio Duvivier, Juca Kfouri, Caroline Rodrigues, Marcilio Godoi e Renato Stockler.
Fotógrafos: Aline Lata, Avener Prado, Bruno Miranda, Gabriel Lordello, Gustavo Miranda, Helena Wolfeson, Leonardo Merçon, Mauricio Simonetti, Tadeu Bianconi e registros dos moradores ribeirinhos.
EMBATUCADO — De repente a música parou.
Do vilarejo de 121 casas e 492 habitantes erguido ao redor das contradições da atividade mineradora restou pouco além do silêncio. O que há agora é vazio, desequilíbrio, saudade, escuridão. A lama tomou o lugar que antes pertencia à deliciosa supremacia do prosaico, cheiro de café fresco no ar, crianças a caminho da escola, os comentários a respeito da rodada de domingo, a fé, o preço do feijão. Os sambas que o velho rádio a pilha difundia em suave harmonia embatucaram.
Embatucar. Verbo intransitivo. Silenciar. Emudecer. Deixar ou ficar sem capacidade de fala, de resposta. Surpreender com alguma notícia má.Os gols da rodada também não passam mais.
As notícias, ao contrário, correm à boca miúda: a cidade que virou fantasma depois da sombria quinta-feira às três e meia da tarde, a escolha do terreno para a reconstrução da vila destruída com o rompimento da barragem da gigante mineradora, os saques às casas abandonadas de súbito quando a lama invadiu tudo, o futuro do rio em torno do qual a vida se nutriu — ou sua falta.Do dono do rádio não sei, só imagino.
Imagino que fosse um pouco como eu, que sou mais de música que de briga, mais do ar que do peso, mais do silêncio que da pressa, mais de toque que de distância, mais de perguntas que de qualquer coisa. Imagino que fosse um pouco como meu velho avô, que nos chamava por números e passava as tardes com a caixa colada no ouvido à espera dos gols do Palestra Itália.Talvez quisesse ouvir detalhes da Folia de Reis, que seguia, devoto, desde o ano de 1954. Talvez fosse como nós, seguidores de sons que embalam a inspiração de determinadas histórias, a explicação de certos acasos, a felicidade das tardes de sábado, a eficiência das faxinas, um livro todo ou os afetos mais fundos.
Vai ver era como o Riobaldo, partido em dois pelo Rio do Chico, mas convicto de que o real não está no início nem no fim. Ele se mostra é no meio da trave
Juca Kfouri
Se houver uma camisa preta e branca pendurada no varal durante uma tempestade, o atleticano torce contra o vento”, escreveu o saudoso Roberto Drummond.
Imagine o quanto o dono desta caneca torceu contra a inundação. Em vão.
Porque tudo foi levado de roldão. Catástrofes naturais acontecem e contra elas pouco se pode fazer.Não foi o caso do que houve em Mariana.Lá aconteceu um crime mesmo. O crime da ganância do capital que não cuidou do que era previsível, pedra cantada como os gols do Rei Dadá. Imagino eu que João, um menino torcedor do Galo, com tantos motivos para chorar suas perdas, acrescente mais esta, singela caneca e demonstração de carinho. João acredita, eu acredito, o torcedor do Galo acredita, nós, os brasileiros, acreditamos, que mais este crime não pode ser esquecido, nem ficar impune.
Gregório Duvivier
Se suzy não fosse fossilizada talvez casasse com o ken talvez ficasse com alguém mais dócil como o barney quem sabe alguem mais fútil como a barbie quem sabe alguem mais réptil como um crocs — nossa boneca fóssil não tinha preconceito antes do banho de lama sonhava em dançar no bolchói anna karênina do tolstói até congelar coitada no meio de um grand-écart perneta espatifada contempla enlameada a vida inteira que poderia ter sido e que não foi.
Antonio Prata
Nunca mais vai ver
Não consola, Marlene! Deixa chorar! Eu falei: “Alex, para de bater essa caneca na mesa! O papai trabalha o dia inteiro na barragem e quando o papai chega da barragem a única coisa que o papai quer é sentar na poltrona e ler o jornal!”, mas ele pá, pá, pá.
Eu falei, “Alex, não ouviu o que eu disse? Para de bater essa caneca! O papai te deu essa caneca pra você tomar o seu Nescau, não é pra irritar o papai!”.
Ele parava dez segundos, dez segundos depois: pá, pá, pá. E daí que é criança, Marlene? Eu olhava pra ele e ele ria. Era pra me irritar. Só pra me irritar. Eu falei, “Alex, o papai tá ficando bravo. Se você não parar, o papai vai tirar essa caneca da sua mão e vai botar em cima do armário.
Claro que não parou. Eu peguei a caneca e botei em cima do armário.
Voltei pro meu jornal. Ele chorou, chorou, chorou, depois ficou em silêncio. Eu estranhei. Deu um minuto, eu ouço: cataplech! Viro, tá a caneca espatifada no chão e o Alex me olhado assustado, segurando a vassoura. Quebrou, óbvio. A asa. Eu falei “pronto, Alex! Tá satisfeito, agora?” Mas ele não tava. Ele pegou a caneca quebrada e me encarou. Aí eu falei, “Alex, sabe o que vai acontecer se você bater essa porcaria dessa caneca mais uma vez? Eu vou pegar essa porcaria dessa caneca e vou subir lá na barragem e vou jogar no fundo da represa e você nunca mais, nunca mais vai ver essa porcaria dessa caneca na sua vida!”.
Claro que ele bateu. Não consola, Marlene. Não consola! Deixa chorar!
Ana Laura Nahas
Carta aberta ao equilíbrio perdido
Prezado Amigo,
Você sabe que, no último ano, muito tempo passou. Sabe que houve tentativas, caminhos, caprichos, desapontamentos, projetos, sonhos, esperas e a imensa capacidade de dizer do silêncio. Sabe que houve a solidão das ausências, o barulho dos excessos, o riso da madrugada, a inspiração das conversas e o amor que não cabe. Você sabe a respeito do esforço que houve para compreender as escolhas alheias, a liberdade, os limites e as vontades, e desconfia do quanto ainda haverá.
Você sabe que, nos últimos meses, muito tempo passou. Sabe que há feridas ainda escancaradas e a vida inteira daquelas comunidades enterradas sob a lama. Sabe da esperança e dos movimentos em direção à reconstrução e em quais momentos a sua ausência fez da sonhada leveza um pesado martírio. Você sabe exatamente quantas revoltas, quais inércias, onde descasos, porque dores e em que ponto a justiça deixou de ser feita, desde aquela tarde de seu súbito desaparecimento.
Você sabe que, nos últimos dias, muito tempo passou. Sabe que houve reencontros, planos, surpresas, pausas e retornos. Sabe das descobertas, dos sentimentos, das futilidades, dos calos, dos apertos e das folgas. Sabe dos discos, dos livros, dos peixes e dos pratos que inventamos. Você sabe que houve também alegrias e a verdade posta atrás da aparente simplicidade de determinadas canções.
Você sabe que, nas últimas horas, muito tempo passou. Sabe dos rompimentos reais e metafísicos e das consequências, físicas e emocionais, de toda a lama, toda a fama, toda a cama, toda Brahma. Creio que saiba, também, o quanto andamos esquecidos da verdadeira essência das palavras — e é como se tivesse sido ontem a aventura narrada pelo filósofo a respeito do sujeito com olhos de sapo que andava pelas ruas de Atenas pedindo explicações sobre o significado de expressões usuais dos interlocutores que encontrava pelo caminho.
Eram fins do quinto século antes de Cristo. Aos juízes, o sujeito com olhos de sapo perguntava o que era justiça. Aos guerreiros, indagava sobre a coragem. Aos supostos sábios, questionava sobre a sabedoria, concluindo que, na maioria das vezes e a despeito de toda a letra, não temos muita ideia do que estamos falando.
Espero que esta carta o encontre restabelecido. Rezo para que os dias e respectivas noites voltem a ser guiados pela firmeza da tranquilidade, acolhidos pelo benefício da dúvida, protegidos pela graça da sutileza. Torço para que as horas voltem a exigir menos de todos os envolvidos em seu balanço. Desejo, por fim, que o abdome sustente o peso das vértebras retorcidas, que as casas voltem a sorrir, que o rio se recupere e que a justiça seja feita.
Contando revê-lo em breve, despeço-me.
#prontofalei!
Bruno ontem você esqueceu a carteira lá no Kiko’s e o seu Francisco me pediu pra deixar aí na sua casa hoje de manhã aí eu escrevi essa carta e pus dentro da sua carteira. Ah é a Larissa! Esqueci de falar. KKKKKKKK!!!! (Será que tb escreve KKKKKKK!!! quando escreve carta ou será que é só no Face e no Zapzap???). KKKKKKKK!!! (Rs!). Não sei porque eu nunca escrevi carta mas eu tô te escrevendo aqui porque eu não tenho o seu celular e não ia ter coragem de escrever inbox porque eu ia ter medo que a Carla lesse e não quero criar problema pra você. KKKKKKKK!!! Desculpa se eu tô rindo muito é que eu tô um pouco nervosa é que o que eu vou te escrever aqui eu nunca disse pra ninguém e não tenho coragem de te dizer pessoalmente e eu tenho certeza que depois que eu deixar a carteira embaixo da sua porta eu vou me arrepender na hora. Mas eu tô escrevendo porque tipo pode ser viagem minha mas tipo ontem eu achei que você me olhou de um jeito diferente quando eu trouxe a sua cerveja lá no Kiko’s e eu ouvi quando o seu Francisco perguntou se você tava feliz que ia casar e você disse que tava mas eu achei que você não tava. E depois você bebeu muito e parecia que tava querendo afogar as mágoas e até esqueceu a carteira. Então ai meu Deus vamos lá… É que… Eu não acho que a Carla é mulher pra você ela não vai te fazer feliz porque ela não te ama de verdade eu conheço a Carla e sei disso quem te ama de verdade sou eu Bruno e se você também tiver algum sentimento por mim aparece hoje no Kiko’s na hora que tiver fechando eu largo às nove e vou tá te esperando embaixo do toldinho azul na lateral depois do bujão de gás vem por trás do abacateiro que é escuro e ninguém vai te ver.
Um beijo no coração.
Caroline Rodrigues
Sobre o Sapo se pisca e
eu digo sapo sem saber o seu tamanho não há nada que o compare, uma casa, uma pessoa, não há régua dimensão — as folhas, mas as folhas, mortas e esse sapo, um chaveiro, ou se abraça inteiro mas por corpo diminuto a faixa etária na base dos seis, sete anos, tem formato hexagonal, veneno que faz bolha da saliva — sapo inflado, balão corpo vazado piñata, é piñata: dentro doce tem surpresa, confete colorido brinquedo, serpentina viva, cobrinhas vermelhas barrinhas de bis só falta o menino estraçalhar Tampa os olhos do Joca Gira o Joca Vai Joca se gira um dois três e pau de beisebol no sapinho pelo olhos se eclode um jorro grosso o rio lamoso barrento marrom dos olhos dos ouvidos e da boca do cuzinho do sapinho piñata a lama escorre no vagar dos cardumes pesados (os mais lentos) por sobre vestidos laçarentos as calças nos joelhos toalhas bordadas pela vó que já morreu foi de velhinha a morte fácil de entender mas a lama e o conceito de surpresa não era pra ser de festa de presente de amor, assim, não era pra ser boa sempre: a surpresa? E o sapinho que não foi perdoado e nem será foi largado bem no início da trilha ao outro aqui, pra não ter o perigo de seguir Joca falou.
Leonencio Nossa
Tarde, lá pelas três e meia, um homem passou de moto, no Paracatu de Baixo, aos gritos, no desespero. Uma barragem da empresa tinha arrebentado lá pra cima. A enxurrada de lama descia depressa pelo Gualaxo e se aproximava. Precisou a polícia aparecer para o pessoal acreditar. Morreu gente no Bento.- Nó…É difícil só de lembrar a carreira no iniciozinho da noite para salvar os velhos e os meninos, tirar a corrente da coleira do cachorro, achar a caixa de retratos que alguém implorou para encontrar entre as tralhas. O desejo urgente do cabeça-de-área do time do Paracatu era por a casa toda nas costas e correr com ela para bem longe.Com lama na canela, a Sandra, vizinha do lado, ainda conferiu se tinha mesmo passado a tranca na porta. Era tique, era uma forma de segurar o choro, acreditar por alguns segundos que voltaria. - É complicado.
Quando a noite avançou, ele estava com a família no alto do morro, depois da roça do Luís. Talvez nada tenha restado lá embaixo. Um amigo da polícia contou que a fileira de casas pertim da igreja desapareceu. A outra, ao lado da escola, também. Era um jeito de conversar sobre um assunto sério sem uma garrafa de café. Restou pouco da vila… a igreja, a escola e as mangueiras, apenas.
O sereno da madrugada chegou. Foi uma noite estranha, diferentemente de muitas da infância, daquelas de trombas d´água, das ameaças das telhas na cabeça de todo mundo. Estranho perceber que, desta vez, do céu não caiu um pingo. A noite vinha na lembrança sem assobio de vento, sem tamarindo entortando como estilingue.Pela manhã, quando a friagem sumiu e o calorão começou, o pessoal foi levado nos carros da prefeitura para um ginásio na cidade. Alguém que voltou à vila com a defesa civil contou que carcaças de casas barreadas emergiram na lama espalhada.As crianças choravam. Os adultos contavam os mortos.Sofria pelo amigo que enfartou na hora do ocorrido.
O motorista do carro-pipa foi arrastado pela lama. Triste foi o que aconteceu no Bento. A neta do Seu José escapuliu da mão do pai e se perdeu. Totó pescava, ninguém mais o viu. O menino da moça da solda morreu. Era, sim, aquele menino grande, esperto. Outra mãe perdeu uma criança pra nascer.
No tumulto não se pensa muita coisa a não ser na mulher e nos filhos. Se mais tempo tivesse, poderia pensar em carregar o aparelho de som, os relógios, as camisas.Lembrar é escolher o que vai lembrar, na ordem de importância e sentimento. Mais esquisito ainda é saber que algumas passagens da vida ficam bem pra depois. A prioridade do lembrar não costuma ser a mesma da rotina do dia a dia. Pensa assim porque, só agora, depois de tantas contas difíceis, lembrou o campo de futebol.Na noite de lama e coisas pra pensar, o zagueiro lembrou o gramado, o saco de uniformes do Seu Marco e o bar do Valério.
Mais distante no tempo, o campo era onde a meninada acompanhava a disputa de papagaios. Tinha de ficar atento ao momento em que a linha de cerol de um cortava a de outro, para correr atrás do papagaio vencido, pelo mato, pelas ruas, aos gritos: — Coieta! Coieta!
Quem abre a cabeça quando está sozinho num canto, na reflexão, encontra muitas histórias.Lembra, por nada, o dia em que, menino, tentou abreviar a maioridade de rua e entrar no ônibus que levaria o time do povoado para jogar no Bento.O ônibus parou, formou-se uma fila.
Passou um, outro e chegou a sua vez. O Seu Marco, com a prancheta que o colocava no mundo em que não podia jogar bola, agarrado ao poder possível, o parou. Num tempo que parecia uma infinidade, o homem fez sinal para entrar. O menino, com peito estufado, foi para o fundo do ônibus, chegou perto do Alfredo, sentado num banco do corredor.- Reda pra lá!
O ônibus não saía. Falaram que haveria uma nova chamada. Imaginou Seu Marco entrando no ônibus, dando ordens para descer quem fosse menino. Tudo isso ocorreu.- Tá faltando lugar. Só vai gente grande.Não houve reação dele e de nenhum adulto. Todos queriam que o ônibus saísse logo. Ele, diminuído, perdeu as palavras. Correu, buscou o primeiro quintal, o primeiro jambeiro. Só desceria dos galhos quando o ônibus tivesse partido e não houvesse mesmo a possibilidade de acompanhar o time. Viu um vulto passar, ouviu um cumprimento. Não parou. Mais à frente, um homem o pegou pelo braço:- Que aconteceu, menino?
Se sentiu um carta branca, à disposição de qualquer time, aquele que ninguém quer. Não é o escolhido do capitão que ganha no par ou ímpar nem é o escolhido pelo que perdeu. Não é a segunda ou a terceira opção de um lado e outro. É o menino que sobrou.Pode entrar no time que quiser.Logo ele que pensou substituir um adulto da linha.
Nesse dia, arriscou ir ao bar do Valério. O velho podia falar algo bom, dizer que haveria um novo domingo, um novo jogo. O dono do boteco, que todo mundo tinha certeza que era o dono do time, não lhe deu ouvidos. O pessoal estava certo em chamar o Seu Marco de empregado do Valério. Olhos sem piscar, imaginou um cataclismo no rumo do bar, uma grande bola de fogo, como aquela que a avó contava ter visto no tempo antigo.Valério gostava mesmo era de receber o prefeito, que vez ou outra aparecia por lá: o presidente da Câmara, um vereador qualquer, um deputado de Belo Horizonte perdido. Abria garrafas e garrafas de cerveja pro pessoal que chegava na companhia da autoridade e ficava satisfeito quando o político tirava a carteira do bolso.- Hoje tá liberado, é por conta.
Pensou numa forma de perder, por uma semana, a capacidade de ouvir qualquer ruído, qualquer conversa, qualquer grilo, qualquer gritaria de uma torcida que chega com o troféu, trôpega, falando palavras que ninguém entende. Pois, essa torcida chegou. O time dos adultos venceu o time do Bento, em seguida outro de Catas, mais o do Barra Longa O Seu Marco deu o troféu pro Valério expor no copo sujo.
Na segunda-feira, a caminho da escola, o menino voltou ao bar. O troféu estava lá ainda sem a poeira e as teias de aranha que encobriam os de outros campeonatos. Não enxergava resquício do domingo naquela peça de lata e madeira. É como se Valério fosse o menino de alguma forma diminuído ao perceber, de manhã, que os vagalumes que prendeu no pote estavam sem luz.- Aqui, cê tá bom? — perguntou um jogador da sinuca, quase bêbado.
O menino sempre compensou essa raiva com a certeza de que o velho estava na idade que não se joga mais no time dos adultos, tinha passado dos cinquenta, não aguentava um tranco. Dele ficou, claro, sempre, a memória do dia em que não pode entrar no ônibus. Não que o Paracatu de Baixo não ganhasse outros torneios, derrotasse o Bento muitas vezes.
O Valério se cristalizou para sempre no homem que foi naquele dia. Tantas chuvas ocorreram de lá para cá. O Valério ficou com a idade de quem é mais velho que o velho que não consegue ser escalado pro time. Soube há certo tempo que o Valério não andava mais. Estava na casa de uma filha em Mariana. Talvez pensava mal dele para reclamar do Seu Marco. Ninguém falava no dono da prancha. Era tão pequeno diante do Valério, era tão insignificante diante de qualquer barulho. Se vivia, era só um silêncio.
Na cabeça do menino encapetado, na confusão de ideias do adolescente e na vida de altos e baixos do adulto, é como se aquele domingo tivesse se tornado um retrato dos dias em que nada dá certo. Ele foi para Belo Horizonte, fez o curso do segundo grau — na escola, tinha até inglês. Cursou o tiro de guerra, voltou, conseguiu emprego de tratorista numa das firmas terceirizadas, casou, teve duas filhas. Construiu uma casa maior que a do Valério. As pessoas gostavam dele, a rua o tratava bem. Paracatu e Bento, todas as vilas de Mariana, agora têm carro demais. Os caminhões carregados passam bem mais pelo asfalto.Valério, dizem, não anda mais. Passa os dias de calor jogado numa cadeira de plástico na varanda de casa. Mas o zagueiro, vez ou outra, sente a vontade de derrotar o dono do boteco.
É claro que a vida seguiu. Ele continua, porém, a contar o tempo pala Copa do Mundo. Quando busca na memória um cachorro atropelado ou o dia da primeira viagem para a praia, busca saber se foi antes da copa do pênalti do Zico, depois da copa do passe do Maradona pro Caniggia ou entre a copa do Taffarel e aquela da França, do Ronaldinho estrebuchando no campo.Lembra, com mais clareza, que, em toda a copa, os meninos esperavam o jogo do Brasil terminar para a pelada. Os craques do mundo entravam em campo novamente ao menos por meio de seus nomes e apelidos, roubados por aqueles garotos de pernas finas. Ninguém fez cara feia quando o Fabiano evocou para si o nome de Zidane no drible no Merivaldo, para depois quase marcar.Um dia, foi chamado para a zaga do time adulto da vila. Era alto, bom na cabeçada, pra tirar bola da pequena área.
Ele deu a sua cota para comprar um novo uniforme. Na chegada do trabalho, a mulher lhe entregou o embrulho.
De frente para o espelho, teve o pensamento mais tolo. O Valério nunca vestiu este uniforme.
Não satisfeito, tirou a caixa da chuteira que não via há tempo, em cima do guarda-roupa, pegou as meias grossas. Estava pronto para o início do jogo, todo estribado.
Pensou em voltar para onde era o Paracatu de Baixo. Aquele mar de lama, queria ele saber, tinha levado para o Rio do Carmo as coisas invisíveis que estavam sobre o terreno plano, dividido em duas partes.Ainda há muita coisa sobre aquele campinho de atacantes, zagueiros e barrados. Estava convicto que tudo continuou ali, à exceção das traves, das marcações do campo apagadas pelo barro impuro, de uma bola que bateu no travessão.
No time adulto da vila, ele até gostava de jogar com a 16. Na distribuição, foi a que ganhou. Era número de reserva. Não tinha problema. Era a camisa daquele lateral-esquerda do Cruzeiro, o Gilberto, escalado pra seleção. Mas aí, depois da Copa da África, os goleiros passaram a usar esse número. Ficou tudo confuso.De súbito, observou, outro dia, que não tinha dado falta da camisa e do calção do time do Paracatu. Teve aquela reação de espanto, de felicidade, de espanto.- Nu…
Marcílio Godoi
do imundo nada se lava
sigo aprendendo a ser bicho instinto rolando na terra descendo o curso da encosta seixo rolando o veio rolando concha e pedra desmorobarrancaindo todo tropel vertical da barragem sem saber a que veio desembestada e solta vazando em ver-me areia e verme placenta e bosta de vaca e carrapicho.
sigo tentando aprender a ser lixo esgoto mineral do esforço das vísceras de ferroferrugem de suor e parafuso dos habitantes desse lado devolver-me ao fuso do planeta empapado seco sem lavra dar-me de volta e volteio neleque comendo lama e fungo em seu revolver-me há de doar-me no revólver de ser outro.
sigo buscando ser um chão pouco abrir-me a água e semente e só peixe plantado, transplantado orientar-me o tronco escoado a canoa em pé e a coluna cervicaldos muitos mortos em mim estendidos em mim escondidos mal morto já enterrado sob o mar pastoso um a um cápsulas de vitamina dem anúncio de vodca movente órbita enterrada sobre a lápide lépida e difusa.
sigo emulando o ser nativo sem blusa falar sem verbo com a floresta e os animais nomear as coisas pelo que delas resta de silêncio guardar respeito pelo céu, os relâmpagos in medias res o absurdo divino que habita os abacates e os brinquedos feitos de coisas velhas e tevês e cascas e as nossas carcaças desimportantes soterradas pela má sorte.
sigo ensaiando a ser indigesto pacote caco de telha no barbante um arco de coisa parada no escuro molecular das coisas, coisas mesmo na matéria atômica estável embrulhada que repousa no interior do sentido desses aparelhos em seu estreito espaço de espasmo que nos espera nas partes soltas, caídas em si emendas rachaduras.
sigo apostando em ser nuvem pura ser pó de estrela, asteroide, abismo infiminfinito da greta digno como um objeto de celuloide recheado de pano, digo, de lixo de açougue que entre a insônia e a insânia espantosa e simplesmente existe no irreal do fundo da terra como a máquina no ideal do mundo do fundo do mar.
sigo pelejando ser parede de sal no solar demão de cal e cuspe remediada bandagem na represa infiltrada rompida explodido mapa de lodo e esparadrapo desenho de mofo na cabeça da gente caco de azulejaria nobre azul e ouro refeito em casa de pobre lavada o vaso de espada de são jorge antúrios e comigo-ninguém-pode no copo de liquidificador reinventado antes de morrer ressignificado no insignificante de remoer o futuro no que outra vez na foto duvida que existe.
que a experiência humana é uma blague tristepiada estranha, desconhecida meio velha que nos contaram adaptada outro dia na feira, no boteco ou era na barbearia inundada ainda e que está dando risada de nosso naufrágio com seus ecos secos rachados como nossos calcanhares ressoando até que nos dissipem, já mortos tentando ainda uma última vez ser gente zumbi numa palmares submersa.
Renato Stockler
Abriram o tempo do chão. Há muito que se falava em não haver mais poesia em canto algum. Rio desorientado e a comida ressecada pelo ouro nos dentes. Existiu uma montanha ali, não?- Me lembro, não era só uma fotografia na parede. O cínico tempo abriu as portas do desumano. Sangrou a terra revolvida nas memórias de gente. Nem sorriu cartas de pompa e urgência. Os mais novos lutam pra desenterrar o passado que faz descaso. Os griôs, calados por alguns instantes, Talvez já soubessem. Na lama, o alimento. Nos pés, o pó. Nas mesas, o caminho de mensagens de muito povos. Ferida a vista, restou o curso das águas.
Desse, não se esquece.
João Barreto
A mineração e os detalhes
Para onde andava, eu não sabia, mas a dica era boa, talvez encontrar um irmão que eu ainda não tinha conhecido ou um amigo desaparecido ou extrair ouro do nariz da pobreza…
Nesses escombros de lama, a casa que um dia habitei. Ao chão, duas fotos estão dispostas em um colchão que serve de moldura. Ali, meu pequeno museu de papel. Os homens se deitam no colchão. Esse colchão agora é meu universo. Lembro que a foto posada foi tirada para mostrar que deixamos de andar de ônibus e que, na época, íamos a Guarapari de carro. A outra, feita de surpresa, não me agradou na época, porque é sem pose, portanto, eu não tinha domínio sobre os seus efeitos. Contá