Neide César Vargas*
Não apenas o Brasil mas o mundo inteiro atravessa uma etapa de rápidas transformações, que trazem incertezas quanto ao futuro de cada um de nós. Estas transformações são desencadeadas pela esfera econômica, pelo modo de produzir e de apropriar riqueza que tem prevalecido no planeta. Ele está assentado fortemente na posse das coisas, da natureza, dos bens, do dinheiro e mesmo das idéias e das pessoas.
Vivemos sob o credo da posse e isso tem se intensificado tremendamente nos últimos tempos, manifestando a sua lógica destrutiva em todas as dimensões da vida: além da economia, nas relações entre as pessoas, na religião e mesmo na ciência. A Ciência Econômica tem sido fortemente influenciada por esse contexto tornando-se o campo capaz de possibilitar as reflexões mais globais sobre essa realidade complexa e, ao mesmo tempo, o campo que mais instrumentaliza essa lógica da posse e de interesse pessoal.
Os tempos de incerteza e de mudanças econômicas radicais levam ao medo e a angústia quanto ao futuro. Temos medo. Temos medo de perder o emprego, medo de não ter mais emprego, medo de não conseguir pagar as contas no final do mês, medo de que nossos filhos não consigam estudar e de não sejam ninguém na vida. Mas o medo não é boa companhia, atrapalha a nossa capacidade de refletir, de ver a realidade como ela é, de encontrar saídas. O medo nos torna cegos e fáceis de sermos enganados por promessas milagrosas de solução de problemas.
Algumas visões econômicas também geram medo, alimentam o medo das pessoas, aterrorizando-as quanto ao futuro. Geralmente elas trazem embutidas em si ideias antigas sob uma nova aparência: são modernas na forma mas seu conteúdo é velho, muito velho. Acreditem ou não isso acontece na abordagem de Finanças Públicas, que é a área da economia envolvida na discussão da PEC 55.
Existe uma visão de orçamento pública muito antiga, do século XIX, que está por traz das explicações econômicas para a adoção da PEC 55 e essa ideia tem sido repetida pelos deputados federais que votaram a favor da medida, pelos jornais impressos, pela televisão, revistas, internet e, particularmente, pelo grande número de economistas que a defendem. De tanto ser repetida essa ideia virou um dogma, contra o qual ninguém pode falar contra. Ela trata os fenômenos econômicos como se fossem a matéria de estudo de uma Ciência Exata, com uma única explicação para cada fato, com uma saída inquestionável para os problemas do governo e da economia. Os desvios no máximo são tratados como erro estatístico ou necessidade de modelagem de aspectos que não foram considerados.
Qual é essa ideia? A de que o governo é semelhante a uma família e deve administrar o seu orçamento tal como faz uma família: não gastar mais do que ganha/arrecada. Essa é uma ideia arqueológica das finanças públicas e era chamada no passado de visão das finanças sadias, do orçamento equilibrado.
Não obstante, tal ideia aparece nas últimas décadas com nova aparência, com novidades que a faz parecer mais do que efetivamente é. Vamos explicar melhor isso.
A primeira novidade é afirmar que se deve pensar as finanças públicas segundo um horizonte de tempo que não é apenas hoje mas sim o longo prazo. Esta é uma boa ideia. Todos concordamos que é necessário ser precavido no que diz respeito ao futuro e atuar hoje pensando nos impactos que essa atuação terá no futuro. Quem discordaria dessa ideia? Não obstante, pensar o futuro do governo considerando apenas a sua capacidade de pagar a dívida pública não é ser precavido. O governo se transforma numa mera máquina de pagar juros, pois o máximo que os governos de outros países alcançaram fazer com suas dívidas, sendo otimista, é estabilizá-las num dado patamar.
A segunda novidade, estreitamente associada ao pensar o longo prazo, é a noção de sustentabilidade. Ela tem sido aplicada às discussões de meio ambiente e é uma novidade de grande apelo para as pessoas comuns e mesmo entre economistas. Sustentabilidade é pensar as coisas de forma com que elas possam perdurar no tempo, possam ter solidez, possam resultar num uso dos recursos que não seja predatório. Quem pode ser contra isso? Quem pode ser contra um uso sustentável dos recursos públicos?
Mas essa ideia nova, aplicada às finanças públicas, não funciona exatamente desta maneira. Eu afirmaria que a noção de sustentabilidade que muitos economistas utilizam nas finanças públicas resulta em seu oposto. Tal sustentabilidade de fato não é aplicada ao que deveria, ou seja, às políticas públicas, por exemplo, aos gastos em educação, aos gastos em saúde, aos investimentos que o governo venha a realizar. Ela só se aplica a uma única variável: a dívida pública. Defender a sustentabilidade nas finanças públicas, conforme os economistas que fundamentam a PEC 55 advogam, é dizer que as finanças públicas devem ter uma prioridade central: pagar as despesas financeiras que a dívida pública gera. As demais despesas viriam depois disso. Todavia, como a atuação do governo pode ser sustentável, fazendo praticamente só isso, por 20 anos? Como uma população poderia aceitar continuar pagando impostos e observar que seus impostos são usados com essa única prioridade? Quão sustentável é uma política dessas?
A terceira novidade é a ideia de Responsabilidade Fiscal, que até fez uma presidente da república cair de tão forte que é. Quem pode defender a irresponsabilidade fiscal? Mas o que de fato é a responsabilidade fiscal aplicada às finanças públicas? É gastar bem, é gastar o necessário? Quem pode ser contra isso? Não obstante, os economistas, quando mencionam Responsabilidade Fiscal, referem-se basicamente à prática fiscal de priorizar o pagamento das despesas financeiras geradas pela dívida pública.
Por fim, uma última novidade, mais usada no campo acadêmico, é embalar as três novidades anteriores num modelo matemático explicativo, que prova numericamente que é preciso gastar menos com salários de servidores, com investimentos públicos, com saúde, com educação, etc, para que se poupe recursos e se pague os juros que a dívida pública gera, estabilizando-a. Isso é pensar o longo prazo para esses economistas. Isso é ser sustentável, é ter responsabilidade fiscal.
O governo, todavia, nunca atua como uma família.
Primeiro porque o governo não controla a sua receita. Ela depende do comportamento da economia. Se a economia cresce, a receita do governo cresce. É completamente diferente de alguém que vive de salário e sabe o quanto vai receber no final do mês.
Por outro lado, todo governo no mundo opera com dívida e, no caso das famílias, isso só acontece quando gastam além do que deveriam. E mesmo as famílias gastadoras podem decidir equilibrar as suas contas e pagar as suas dívidas. Distintamente, nenhum governo controla totalmente a sua dívida. Ela aumenta mesmo que ele gaste menos do que arrecada pois a dívida depende de outros fatores não fiscais. Depende, por exemplo, da política cambial ou da política monetária que o governo decide adotar. Depende de eventuais socorros financeiros que o governo conceda a bancos, a empresas, a governos subnacionais. Depende também do próprio comportamento da economia, do estado de confiança dos agentes econômicos na mesma. A ideia de cortar gastos primários nunca vai ser suficiente para evitar que a dívida pública cresça.
O governo e os defensores dessas ideias prometem o que não podem entregar: que se fizermos um corte duro de gastos e por 20 anos, a dívida vai se estabilizar, a economia vai voltar a crescer e terá emprego para quem quiser trabalhar. Mas não há garantias disso. A visão antiga e simplificadora de finanças públicas está por traz dessa crença, escondida por novidades que nada mais são do que slogans e embalagens bonitas para nos vender um produto ruim. Esta visão não se assenta numa perspectiva de longo prazo orientada para as políticas públicas que atendem a população: a educação, a saúde, a assistência social, a previdência social. Ela não vai além de cortar gastos e reservar parcela de recursos para o pagamento de parcela das despesas financeiras do governo.
Diante da crise, das incertezas, do confronto de posições, do caos social em que estamos imersos devemos ser prudentes e evitar deixar-nos levar por velhas ideias que se colocam como novas, como saídas únicas e milagrosas para os problemas econômicos de nosso país. Não há saídas milagrosas. As saídas pertinentes e criativas têm que ser construídas coletivamente. Para além dos slogans de certas visões econômicas reducionistas.
*Economista, Professora, Doutora em Ciências Econômicas.