Por André Ricardo Valle Vasco Pereira*
Li recentemente um artigo de opinião do jornal inglês The Guardian, escrito por George Monbiot, que traz algumas observações interessantes sobre o neoliberalismo (https://www.theguardian.com/commentisfree/2016/nov/14/neoliberalsim-donald-trump-george-monbiot). Ele defende a ideia de que a versão de Thatcher foi influenciada pelo livro Os Fundamentos da Liberdade, de Hayek. Resgata este trabalho e o seu argumento principal, que é a defesa da liberdade dos ricos em gastar seu dinheiro do jeito que bem entendam, inclusive aqueles que herdaram sua fortuna, nunca tendo trabalhado por ela. Uma atitude pouco comprometida com a reprodução da riqueza e voltada para o consumo “irresponsável” dos muito ricos seria uma forma inovadora de transformar o mundo. Qualquer tipo de impedimento a tal grau de liberdade dos muito ricos (impostos, taxas, programas sociais, intervenção estatal, sindicalismo, etc) deveria ser combatida.
Não vou entrar no mérito da correção ou não de tais ideias, destaco a informação de que empresas e milionários importantes deram recursos a acadêmicos e ONGs que divulgaram a visão de Hayek de forma ativa já por volta de 1975, como a DuPont, General Electric, a cervejaria Coors, Charles Koch (empresário do setor de petróleo que expandiu atividades para outros ramos; junto com o irmão é um dos financiadores do que deu origem ao Movimento Brasil Livre), Richard Mellon Scaife (banqueiro), Lawrence Fertig (empresário de propaganda), o William Volker Fund (entidade financiadora de “libertários”) e a Fundação Earhart (entidade criada por um milionário do setor de petróleo, que financiou Hayek pessoalmente). Ou seja, o avanço do neoliberalismo não é o resultado de uma pura e simples expansão das ideias de Hayek, porém um trabalho de aparelhos ideológicos por muitos anos seguidos.
Mais relevante ainda é o argumento segundo o qual Tony Blair e Bill Clinton foram diretamente responsáveis por uma virada de seus partidos que, na prática, significou a adesão ao neoliberalismo, o que o autor chama de colonização de legendas antes comprometidas com a social-democracia. Blair transformou o Partido Trabalhista Britânico em “Novo” Partido Trabalhista (com mudança de estatutos). Clinton não precisou de tanto esforço com o Partido Democrata.
A combinação de uma propaganda ativa com colonização dos partidos social-democratas teria resultado em dois efeitos: desempoderamento e “disenfranchisement”. Esta última palavra é interessante. Tecnicamente, significa “desalistamento”, ou seja, a retirada do direito de voto. Num sentido mais amplo quer dizer “privação de direitos”.
A tese do autor do texto é a de que o avanço do neoliberalismo deixou as pessoas sem capacidade de intervenção nas políticas públicas, por conta de sua drástica redução (desempoderamento), e, a seguir, ao lhes retirar direitos (disenfranchisement), tornou o plano da Política irrelevante para a vida das pessoas, de forma que exercer o direito de voto passou a ser visto como algo irrelevante, pois não haveria real diferença entre Conservadores e Trabalhistas, no Reino Unido, ou Democratas e Republicanos, nos EUA. É por isso que o termo disenfranchisement deve ser lido em seu sentido mais amplo e, ao considerar o voto, não está falando de um impedimento em votar, mas um desinteresse provocado pela vitória de uma concepção. Do que adianta ter o direito de voto se não há competição real, com possibilidades concretas de vitória, para posições realmente distintas? É por isso que uma tradução interessante para o português pode ser a de “esvaziamento de direitos”. Eles foram obtidos, mas acabaram sendo esvaziados de sentido. Podem ser exercidos, mas não faz diferença devido ao seu esvaziamento.
O texto conclui com uma reflexão sobre a figura de Trump como a realização do ideal de Hayek, um milionário que herdou sua fortuna e age de maneira irresponsável, inclusive em termos de discurso e ética. Ele entende que o resultado é a demolição da decência restante, a começar pelo controle do aquecimento global. Ou seja, tudo o que se coloca além do interesse individual egoísta dos muito ricos não importa, como a guerra, a destruição da natureza, desde que gere lucros.
Há certos exageros no artigo, mas achei interessante a maneira como ele lida com o deslocamento da social-democracia. Antes do neoliberalismo, este projeto político atraiu partes da esquerda e também setores das elites, principalmente por sua imersão no modelo do Estado de Bem-Estar Social Intervencionista. A social-democracia se baseou em valores como igualdade e fraternidade, em versões não radicais. Implicava na mobilização coletiva, na defesa dos direitos de todos, em um empoderamento das coletividades em luta e um ideal de ampliação dos direitos (enfranchisement). Após a “revolução” neoliberal do thatcherismo e o reaganismo, passamos a ter ciclos de governos neoliberais e social-democratas, principalmente na Europa.
Fica a impressão de que o mesmo estaria acontecendo no Brasil desde os anos 1990. Só que os mandatos social-democratas funcionam, na prática, como correções reformistas dos excessos dos neoliberais. As ideias básicas em termos de finanças públicas, de controle da inflação, de políticas pró-mercado, de educação tecnicista, de apoio e incorporação da lógica das metas e produtividade em todos os setores são mantidas e até ampliadas. Ao mesmo tempo, os partidos, sindicatos e formas tradicionais de ação coletiva vão envelhecendo, oligarquizando-se e perdendo a luta contra as relações sociais de trabalho marcadas pelo neoliberalismo.
Assim, não só os governos social-democratas cedem ao neoliberalismo em seus fundamentos como também suas bases sociais. Num país como o nosso, com amplos setores que nunca chegaram a ser incorporados aos direitos civis, sociais e humanos, que nunca conseguiram lutar organizadamente por eles, parece que a adesão desenfreada ao neoliberalismo citada por Monbiot para o Reino Unido e os EUA acaba resultando mais da militância de classe média e de uma necessária combinação a uma pauta conservadora. Em um próximo texto, vou desenvolver mais a reflexão destes pontos para o Brasil.
* Graduado em História, Professor do Departamento História/UFES, Doutor em Ciência Política.
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