Por Helder Gomes*
Procuro entender as atuais motivações do movimento estudantil que se organiza em todo o país. Parece que, além do congelamento de gastos públicos essenciais, o que está efetivamente entre as preocupações de estudantes que ocupam os espaços escolares, as universidades e as ruas, em todo o país, é a Medida Provisória que trata da Reforma do Ensino Médio.
Desde 2013, ficou mais nítido para a juventude brasileira que o “terror econômico” que se aprofunda vem mesclando pelo menos duas modalidades de ameaças sobre a vida social. De um lado, cresce a aflição popular diante da barbárie que emerge em meio ao desemprego, ao endividamento das famílias e que enfrentam cada vez mais dificuldades em acessar gratuitamente os serviços públicos mais básicos. De outro lado, percebem a ação desesperada de gente muito esperta, que busca a qualquer custo oportunidades de acumulação, explorando atividades que os governantes de plantão se dizem incapazes de manter sob exclusividade do Estado. A privatização via cessão do patrimônio e as formas mais disfarçadas de terceirizações de serviços dão a tônica da Reforma do Estado, que vem sendo proposta desde a implantação do Plano Real, há mais de vinte anos.
Mais recentemente, no entanto, esse movimento das elites, que engatinhava ao ritmo das artimanhas políticas tradicionais, ganhou uma velocidade assustadora. O motivo foi, sem dúvida, a explicitação de que a tal blindagem da economia brasileira, ante ao aprofundamento da depressão econômica mundial, não passava de uma bela maquiagem, que procurava encobrir as desastrosas consequências do modelo de estabilização inflacionária adotado desde 1994.
Alguém já disse que é impossível enganar todo mundo o tempo todo. Mas, o mais importante é entender como tem sido possível enganar tanta gente há tanto tempo. Tem sido essa a base das perguntas nos debates organizados por essa juventude insurgente, que surpreende por sua capacidade impressionante de formular a resistência às lógicas tradicionais de interpretar e apresentar soluções mágicas, se voltando para os efetivos problemas estruturais do país.
A implantação de projetos para a Educação Básica no Brasil tem sido uma tragédia em termos de resultados qualitativos. O diagnóstico geral revela que boa parte dos programas implantados nas últimas décadas no país naufragaram na sua própria insuficiência conceitual quantitativa (de melhoria das estatísticas oficiais) e nos limites de seus principais procedimentos operacionais. Entretanto, mais recentemente, uma avaliação mercantil mais específica parece prevalecer na indicação de políticas alternativas, a partir de organizações empresariais que tomam a iniciativa de apresentar/fomentar instrumentos de políticas públicas, fundadas na concepção de que os parâmetros curriculares da Educação Básica devem se aproximar ainda mais das demandas empresariais por uma preparação acrítica para o trabalho.
Nasce, assim, a nova salvação da lavoura: a difusão de escolas em tempo integral. A proposta básica tem sido criar certa especialização, com poucas disciplinas, que seriam mais assimiláveis pelo público alvo, a partir de atividades de ensino-aprendizagem que estariam à disposição em tempo duplicado, em espaços específicos, com salas temáticas destinadas às aulas e ao reforço escolar. Pela proposta empresarial, seria possível unir a formação acadêmica com a profissionalização e a preparação para a vida.
Os riscos associados parecem flagrantes. Com mais essa transferência de custos, logo se evidenciaria a incapacidade do Estado em investir diretamente na ampliação e na gestão da nova rede de escolas em tempo integral, o que exigiria sua privatização, restando ao Estado a abertura de linhas de financiamento que seriam complementadas pelas redes de financiamento privado, em nichos de interesse particular. Porém, ameaça social maior ainda está em abandonar a perspectiva de uma formação efetivamente integral, abrindo mais uma oportunidade para o fomento empresarial do treinamento, ou do adestramento mercantil da força de trabalho requerida, sem tantos custos para as unidades capital. Isso significa uma total inversão do que se concebe como uma efetiva educação integral, pública, de qualidade, universalizante, pautada na integralização de conteúdos, com especial atenção à formação de capacidade crítica, a partir de disciplinas de caráter sociológico e filosófico e de atividades lúdico-culturais vinculadas às tradições locais e regionais.
Os primeiros resultados dos planos piloto implantados Brasil afora são reveladores da mediocridade empresarial. Uma primeira avaliação tem mostrado que os espaços reaproveitados e readaptados, para o funcionamento da nova modalidade de escola de tempo integral, não possuem os equipamentos didáticos fundamentais e estão desprovidos de laboratórios, salas para atividades artísticas e culturais, entre outros instrumentos pedagógicos. Diante de tais carências, o corpo docente tenta se desdobrar em criatividade para ocupar as aulas em turnos contínuos, cuja válvula de escape tem sido organizar passeios com estudantes pelas cidades, aproveitando a disponibilidade de meios de transporte financiados por patrocinadores privados do projeto.
Processos seletivos, adequados às necessidades dos planos piloto apresentarem resultados positivos, acabaram reunindo nesses espaços um perfil de estudantes de qualidade acima da média, como é fácil de observar. Isso parece revelar-se como um tiro pela culatra, uma vez que essa moçada tem apresentado um senso crítico bastante acentuado e essa concentração tem elevado tanto a qualidade das atividades pedagógicas nas escolas ocupadas, quanto o nível da resistência ao planos de reforma do ensino médio, tais como anunciados pelas entidades empresariais e pelos governantes de plantão.
Parece que a guerra declarada recentemente pelas elites brasileiras, contra os interesses das classes trabalhadoras, não tem encontrado estudantes ajoelhados e cabisbaixos. Ao contrário, estão dando uma demonstração de que não aceitarão passivamente a implantação do projeto de escola adestradora e, nisso, passam a contar com o apoio da militância popular.
*Economista, Doutor em Políticas Sociais