Por Aylê-Salassié F. Quintão*
O autor da frase não foi exatamente um praticante do próprio conselho. Ficou para os que vieram depois. Acabo de perder um amigo “peleador” que, como guerrilheiro nos tempos da ditadura, adotou a linha chinesa, pouco contemporizadora, mas que na luta cotidiana seguiu o ensinamento do Che: lutou muito, amou muito e teve uma família grande e linda criada na clandestinidade*. Morreu aos 68 anos, em Brasília, após um fracassado transplante de fígado, rodeado pelos filhos e amigos.
Quando fiz a opção pela luta armada, comuniquei para o meu pai. Ele fez duas recomendações: Meu filho não assalte banco, nem mate ninguém. Cumpri , pelo menos, uma das promessas: não matei ninguém”.
É um alento para a hora de juízo final que, certamente, cobrou dele as razões pelas quais, em nome de uma revolução armada, odiou até amigos com os quais foi criado junto. “Sem ódio não há revolução”, pregava o nosso amigo Lênin. Bertrand Russel o completou, observando que, independente dos motivos, “O coração humano, tal como a civilização moderna o modelou, está mais inclinado para o ódio do que para a fraternidade”. O ódio terminou sendo adotado como metodologia. Passou a estar no centro de todas as incompatibilidades sociais - presente na vida de cada um -, embora se trabalhe intensamente para enterrá-lo. Parece um instinto que aflora animalizando o sujeito.
Como se perde tanto tempo odiando pessoas tão próximas, cuja vida paralela deixa de enriquecer a nossa existência individual! Pessoas comuns se odeiam, por não compartilharem as mesmas preferências, os mesmos gostos, as mesmas visões de mundo. A relação entre elas é mantida ou interrompida porque não se respeita nem se faz qualquer esforço para compreender o outro. E assim perdemos, ao longo da vida, muitos amigos, com os quais só vamos reencontrar nos momentos terminais.
Grandes desastres humanos foram produzidos na História, devido ao cultivo do ódio: na Alemanha, na Espanha, na União Soviética, na China, nos Estados Unidos, na América Latina, e no Brasil também. O Acordo de Paz entre o governo colombiano e as FARC, rejeitado pelos colombianos no plebiscito, propõe-se a encerrar uma luta odiosa que já dura 50 anos, e que resultou em mais de 200 mil mortos. Em nome de uma revolução ou de uma hegemonia de classe, pagou-se o ódio mútuo com vidas inocentes.
Simples sentimento humano, o ódio, aliado do ciúme e do terror, constitui-se num instrumento de luta, de dominação e, contraditoriamente, de libertação. A morte de Fidel ilustra a assertiva, ao lembrar os 12 mil cubanos, um grande número de civis, mortos para que não servissem de entrave à consolidação da Revolução. Companheiros, como Cienfuegos, o homem que derrubou o governo de Fulgêncio Batista e que, como amigo, aguardou uma semana, em Havana ocupada por ele, até a chegada de Fidel para entregar-lhe o Poder, foram sacrificados sem piedade porque, recusavam-se a embarcar numa outra esteira de ódio. Filho de sapateiro, mais popular que Fidel, “Comandante del Pueblo”, morreu na queda de um avião Cessna que supostamente desapareceu no mar. Seu corpo nunca foi encontrado. Eliminaram-se seus vestígios até na História, embora as fotografias da época mostrem-no sempre à frente da tomada e ocupação das cidades.
Na maioria das vezes, sobretudo no campo revolucionário, o ódio que carregamos , em particular quando iniciamos a luta ainda na imaturidade, é forjado por pessoas com as quais não tivemos nenhuma relação direta. Somos seduzidos para o ódio, a partir da admiração por alguém ou alguma causa abstrata. Nunca nos perguntamos: “Como estranhos conseguem nos fazer odiar nossos próprios amigos! O erro está neles ou em nós?” O ódio aplica-se sobre concepções de mundo que se destilam pela política, difundindo-se nos discursos correntes das ideologias e, hoje, até do marketing, dando-lhe vida como verdade absoluta, mesmo sem o devido amparo científico. Avança sobre o comportamento dos jovens, sobre lares, dentro de corporações, emulado pela ausência de reflexão e ética, e vai destruindo famílias, relações de amizade, desmitologizando religiões e crenças, gerando outras sob o argumento paradoxal de uma evolução do pensamento humano.
O ódio combina com a frustração, a maldade e o terror. Daí a fala do filósofo inglês de que o coração humano, modelado pela civilização moderna, inclina-se mais para o ódio do que para a fraternidade. “Sem ódio não há revolução...”. Precisamos odiar para evoluir. “As crianças devem ser ensinadas a odiar seus pais...” São afirmações expressas por seres humanos comuns que ganharam configurações mitológicas, e mobilizam milhões em direção aos suicídios coletivos. “É loucura odiar todas as rosas porque uma, em algum momento, te espetou” observa Saint Exupéry. Apesar da brutalidade da luta em que se envolveu, a partir dos 17 anos, meu personagem – Álvaro Lins Cavalcante, Timóteo, Paulo Rodrigues, Paulo Tavares e mais quatro sujeitos ocultos – pensava já no final como Exupèry: “Só se vê bem com o coração, o essencial é invisível aos olhos”. Por isso a homenagem que lhe fiz com o livro “Codinome Beija Flor” (QUINTÃO, ASF. Codinome Beija Flor, Otimismo, 2016).
*Jornalista, professor, doutor em História Cultural.