Por Ayle-Salassie F. Quintão*
“ O senhor prevaricou, ao não me denunciar”. Na esteira dos acontecimentos recentes, poderia acusá-lo de ter contribuído moralmente com a sua omissão, para a dimensão que tomou a Lava Jato - discussão no plenário entre senadores. No mesmo diapasão, ainda no Parlamento, na CPI que apurava irregularidades na Petrobras, Marcelo Odebrecht (dezenove anos de prisão) alegou sua formação familiar ética, para não aderir `a delação premiada “.
Marcelo, também pai de família, optava por jogar para debaixo do tapete a miséria da política, em nome do que ele chamava de indignidade de uma delação. Acobertava, desvios de dinheiro público da ordem de R$ 7 bilhões e protegia quase 200 parlamentares que, com sua intermediação, haviam transgredido a lei, usando recursos obtidos irregularmente, para elegerem-se deputados, senadores, prefeitos e governadores e até presidentes da República.
Tudo isso parece vir do “berço”, e menos das facilidades oferecidas pela Lei 12.850/13. A família, e não a lei teria sido a responsável por esse amontoado de “deduragens”. Ver estampada nos jornais a fotografia do pai, do irmão ou da mãe, acusados de corrupção, de enriquecimento ilícito e serem chamados de “ladrões”, é demais para qualquer mãe, filho ou filha.
Essas coisas tem história. Começam na vida de cada um nos pequenos deslizes, concessões e omissões: os tais “jeitinhos”. “É a fórmula mágica e criativa para resolver os problemas cotidianos ...” e que sempre pareceu mais próxima de uma criatividade ancestral do que da incapacidade de encarar as coisas legalmente (Arias, 2013).
Vejam isso. No dia a dia das pessoas comuns vamos encontrar, sentado na mesa de um boteco, o jovem provinciano procurador que se mudara recentemente para aquele edifício. Solteiro, sem conhecer bem os arredores e pouco afeto às habilidades exigidas na cozinha, começou a tomar café no bar da esquina. No momento em que ia pagar, a dona do estabelecimento disse-lhe cordialmente:
“ Não precisa pagar agora. Paga tudo no final do mês”.
Vindo de uma formação familiar cristã e rígida (conservadora?!), em início da carreira no Ministério Público, ele reagiu:
Peço à senhora a gentileza de nunca mais me fazer uma proposta dessa natureza. Poderia mandar prendê-la. A facilidade que está me oferecendo é um primeiro ato de corrupção.
Em sentido contrário, surpreendeu o fato do filho de Ceveró ter tido a coragem de gravar uma conversa privada com o senador Delcídio do Amaral, invertendo a equação familiar, para tentar salvar a alma do pai, já no purgatório, a meio caminho da condenação. Em angustiado ato de desespero, gravara Delcídio para, no mínimo, lavar a moral da família, vilipendiada na escola, no mercado, no trabalho, até no olhar de estranhos.
Desde Engels (A Origem da Família, da Propriedade e do Estado ) os modelos familiares são descritos e questionados como base de sustentação das sociedades. Seria fruto de arranjos e demandas contemporâneas. A estrutura apropriada no Ocidente amparou-se numa plataforma moral, religiosa e burguesa que permitiu a configuração do Estado Nacional e de um tipo de cidadania. É tão expressiva que, segundo Rui Barbosa: “...destruída a família, a sociedade se desfará automaticamente”.
Daí concluir-se que as famílias dos envolvidos na Lava-Jato tiveram um papel muito mais importante que a lei, ao recomendar aos pais a opção pela “delação”. Fragilizados pela vergonha familiar, os 35 delatores foram induzidos a assumir a culpa pela omissão ou conivência com os atos lesivos aos cofres e à moral pública.
O locus de origem da moralidade na Lava Jato, atribuída a Sergio Moro, situa-se, na realidade, na família, na escola e, em terceiro lugar, na vida cotidiana. O desenvolvimento da moralidade está relacionado à qualidade das relações nos ambientes sociais nos quais o indivíduo interage (Vinha, 2016). Uma estrutura familiar sólida ajuda na formação da personalidade das crianças e dos adolescentes, propiciando-lhes não apenas os meios, mas, e sobretudo, as necessidades de amor, de valoração, de limites e de coerência. Por meio dos ensinamentos dos pais, os filhos descobrem as razões do estar nesse mundo, e como ocupar o seu lugar. Gabriel Chalita (2008), o educador, destaca os valores cultivados em família para o desenvolvimento de habilidades de autodefesa e de auto-afirmação do indivíduo.
No ambiente da delação ou fora dele, com o quadro de desconfiança que se instalou no País, um sujeito submisso a “delação premiada” chegou ao fundo do poço, no limite da humilhação. Será certamente desacreditado junto à sociedade, no mínimo, como um “prevaricador”.
Dificilmente perderá, contudo, o lugar no seio da família, construída de sonhos, de amor, necessidade de conservação, cumplicidade e de amizade. No Ocidente, o ambiente familiar teve ate hoje uma estrutura sólida. As manifestações das ruas indicam que a família, e não os partidos ou ideologias, continua a servir de modelo para a sociedade, e os pais de referenciais para os filhos. A questão é que referenciais deixam cada um?
Jornalista, professor doutor em História Cultural;
Nota da Redação: Foto ilustração baixada da Rede Social.
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