Por Henrique Braga* e Paulo Nakatani**
A inflação e as despesas primárias
Em linhas gerais, a Proposta de Emenda Constitucional número 55, a PEC 55, aprovada na última terça-feira, limitará, pelos próximos vinte anos, o crescimento das despesas primárias à inflação, medida pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo, o IPCA. Para explicar seus impactos sobre os serviços públicos, dos quais dependem os trabalhadores brasileiros, deve-se atentar para o significado de “despesas primárias” e de “inflação”.
Para quem não é versado em economia, o termo “inflação” causa substantiva confusão, aumentada pelo noticiário, de que qualquer aumento nos preços é, imediatamente, “inflação”. Nada mais equivocado, pois, “inflação” significa desvalorização da moeda que se expressa através do aumento contínuo de um nível geral de preços, de modo que, por exemplo, a elevação do preço do quilo de chuchu no mês de dezembro pode não significar aumento no nível geral de preços, caso a queda do preço do quilo de batata seja igual ao aumento do preço do quilo de chuchu. Com esse exemplo simples, chama-se a atenção para o fato de que a inflação mensura quanto os preços de uma economia estão em alta com relação aos seus preços no período (mês ou ano) anterior. No caso do IPCA, mede-se a variação nos preços dos principais produtos consumidos, em média, pela família brasileira com renda entre 1 e 40 salários mínimos. (http://dados.gov.br/dataset/indice-nacional-de-precos-ao-consumidor-amplo-ipca)
Aqui, encontramos o primeiro problema com a PEC 55. As despesas primárias do governo não são os gastos com alimentos, bebidas, vestuário, energia, água etc. de uma família, mas sim gastos com bens e serviços complexos, como hospitais, escolas, estradas de rodagem e outros, cujas variações de preços não são iguais às variações de preços dos bens consumidos por uma família. Além desse problema, corrigir as despesas primárias pelo IPCA significa corrigir a perda do poder de compra dessas despesas. Em outras palavras, a capacidade de gasto total do governo será mantida constante durante os próximos vinte anos, significando que, por exemplo, o aumento no número de hospitais, atendimentos, serviços educacionais etc. somente ocorrerá caso o governo diminua outros gastos. Contudo, esses aumentos são pouco prováveis, pois o direito à aposentadoria, da qual o governo é responsável por meio da previdência, crescerá por causa do envelhecimento da população brasileira, ampliando sua parte nos gastos primários. E isso ocorrerá mesmo com a reforma da previdência em curso.
E as despesas primárias, o que significam? Tratam-se do conjunto das despesas do governo, desconsiderados os gastos financeiros, que são compostos pelos pagamentos de juros, amortizações e rolagem dos títulos da dívida pública. Da mesma forma que são calculadas as despesas primárias, o governo também calcula suas receitas primárias, aquelas que desconsideram seus ganhos financeiros. Esses últimos compostos, na sua maioria, pela emissão de títulos de dívida pública, que são a contrapartida do gasto financeiro com a rolagem dos títulos de dívida pública, seus juros e suas amortizações.
Esclarecido os significados de “inflação” e de “despesa primária”, pode-se afirmar que a PEC 55 congelará o conjunto das despesas do governo que não sejam suas despesas financeiras. Tais recursos, apesar de crescimento recente nos gastos, ainda são insuficientes para a satisfação das necessidades de saúde, de educação, moradia, saneamento, infraestrutura e para assegurar o direito à aposentadoria dos trabalhadores brasileiros. E, por isso, a PEC 55 não significará melhora da saúde e da educação (dois índices sociais de maior preocupação dos trabalhadores brasileiros), e tampouco assegurará a aposentadoria. Isso sem falar de outros gastos, como cultura, esporte, lazer, saneamento etc. que serão seriamente afetados.
Não há saída?
Mesmo diante desse cenário de congelamento das despesas primárias, justamente aquela parte do gasto que retorna – embora de maneira desigual – na forma de saúde, educação, saneamento, etc. para a população, há uma narrativa diária a favor da PEC 55. O argumento mais recorrente em defesa dessa proposta tem o seguinte enredo: as despesas primárias crescem de forma descontrolada. Essas despesas ultrapassaram as receitas primárias em 2015 (e tudo indica que ultrapassarão em 2016), fazendo com que a dívida pública aumente de forma desenfreada, aprofundando a recessão.
De acordo com essa narrativa, tecida pela grande mídia, economistas, políticos e grupos empresariais – como a FIESP e seus similares estaduais –, a raiz do problema do orçamento público está no descontrole das despesas primárias. Tal descontrole obriga o governo a tomar emprestado com o setor privado, por meio da emissão de títulos públicos com elevadas taxas de juros. Ao fazer isso, retira os recursos da economia que poderiam ser investidos pelo setor privado em outras atividades, geradoras de emprego e de renda para o conjunto da população.
A solução para o crescimento descontrolado das despesas primárias, segue a narrativa, reside em congelar seu crescimento real. Com isso, o governo poderia reduzir a emissão de títulos de dívida e sua taxa de juros. Com perspectiva de menor ganho por meio dos títulos de dívida pública, o setor privado investirá em atividades geradoras de emprego e renda, permitindo a recuperação das receitas primárias que, ao ultrapassarem as congeladas despesas primárias, provocarão uma redução ainda maior do endividamento do governo. Isso inaugurará, de acordo com esse enredo, um ciclo virtuoso de crescimento da economia brasileira.
O primeiro problema desse argumento reside na explicação para o resultado primário negativo do governo no ano de 2015 – isto é, suas despesas primárias acima de suas receitas primárias. Esse resultado não foi produzido pelo aumento desenfreado das despesas primárias – a tal da “gastança” – mas sim por causa da queda das receitas ao longo de 2015, justamente porque a recessão econômica se tornou mais grave. Com isso, a arrecadação do governo caiu porque depende, em grande medida, dos impostos indiretos – aqueles pagos por todos, independentemente do quanto ganham, e que recaem sobre o consumo. Em declínio quando aumenta o desemprego, o pagamento de impostos indiretos afeta a receita do governo, sendo que o impacto é maior quanto maior for a recessão, pois as famílias de baixa renda têm maior participação do consumo na renda do que as famílias de renda elevada, sendo as primeiras afetadas pela permanência da recessão.
Além da queda na arrecadação diante da recessão, o governo optou por ampliar as renúncias fiscais. Utilizando o argumento de que abrir mão desses recursos estimularia a economia, o governo deixou de arrecadar o valor de R$ 452,0 bilhões de 2010 até 2016. Apesar disso, a recessão continuou a avançar, indicando que essa renúncia de impostos serviu apenas para serem embolsados pelos empresários. Aliás, um conjunto expressivo de empresas devem ao governo. O que significa que impostos foram pagos, recebidos pelas empresas, mas elas não repassaram os impostos para o governo, sendo processadas na justiça por isso. Esgotados todos os recursos e havendo comprovação da sonegação, o governo está autorizado a cobrar o pagamento dos impostos devidos, que estão na casa de R$ 723,38 bilhões (até 2015), segundo o Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda.
Com os valores apresentados acima, nota-se que há saídas para recompor as receitas do governo sem que suas despesas com o Sistema Único de Saúde (SUS), o ensino fundamental, médio e superior, a previdência social, a cultura, o lazer, a habitação, o saneamento básico e a infraestrutura etc sejam afetadas. Contudo, suspender isenções e reaver impostos não pagos são medidas pouco eficazes para recompor a receita de forma sustentada e equitativa e é repudiada pelos empresários e pelos representantes políticos no Congresso Nacional.
Nesse sentido, deve-se priorizar uma reforma tributária que amplie os impostos sobre dividendos e remessas de lucros ao exterior, hoje isentos de qualquer tributação, e reduza os impostos sobre o consumo, que afetam as famílias de rendimento mais baixo, cuja maior parte do gasto é com consumo. Uma reforma tributária que siga o princípio da equidade no pagamento de imposto – paga mais quem mais pode pagar – poderia render um crescimento de R$ 700 bilhões na base de arrecadação (valor estimado pelo economista Robert Iturriet Ávila, publicado no Brasil Debate, a partir das declarações de Imposto de Renda de Pessoa Física de 2014). Assim, ao invés de reduzir suas despesas, o governo teria condições de ampliá-las, dando conta de serviços que hoje são, sabidamente, insuficientes para atenderem as necessidades dos trabalhadores. Note-se, por fim, que essa proposta é prática recorrente de qualquer país classificado como “de primeiro mundo”, como os Estados Unidos.
*Professor adjunto do Departamento de Economia da UFES.
**Professor titular do Departamento de Economia da UFES e do Programa de Pós-Graduação em Política Social.
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