Por Helder Gomes*
A abordagem deste texto procura trazer ao debate uma visão sobre as formas diferenciadas em que o Estado capitalista se manifesta concretamente nas várias regiões do mundo ao longo do tempo. Discute-se aqui como certos conhecimentos da História permitem acumular fundamentos para a compreensão teórica das mediações necessárias à percepção de que, no processo desde a consolidação do capitalismo até a evolução para sua fase superior, imperialista, os Estados nacionais, fora dos centros dinâmicos da acumulação internacional, passaram a ser gestados de forma inorgânica, sob forte pressão exógena. Essa inorganicidade estava marcada, em especial, pela ausência interna das classes sociais básicas, presentes apenas nas sociedades com relações avançadas do capital. Daí a tese central, de que isso só foi possível na medida em que o capitalismo estava organizado em nível mundial. Sobre isso, vale a pena a leitura de “O Estado Superdesenvolvido”, de Gilberto Mathias e Pierre Salama.
O resultado dessa diferenciação foi a consolidação de Estados nacionais dependentes, subordinados aos interesses das grandes potências imperialistas, portanto, bastante distintos daqueles que surgiram organicamente das experiências do período de emergência da industrialização. Vejamos a coisa mais de perto.
Um dos pressupostos para o capitalismo foi a formação de um mercado mundial. Melhor dizendo, a organização ainda precária de diversos mercados, criou a partir do século XVI uma rede mundial de fluxos de comércio e de usura, mesmo com todas as dificuldades de navegação transoceânica, de controle e de segurança, próprias daquele período em que predominavam formas bastante violentas de acumulação primitiva de capital. Como nos ensinou Karl Marx, no capítulo 24, do Livro I, d’O Capital, a pirataria, a pilhagem, o tráfico negreiro, a escravização de povos nativos não europeus foram, entre outros, pressupostos fundamentais para a emergência do capitalismo, num momento em que a colonização do Novo Mundo permitia uma intensa acumulação centralizada de riquezas, especialmente na forma de dinheiro.
Na medida em que o capitalismo avançava para sua fase superior, metrópoles e colônias foram gradativamente se relacionando em novas bases, processo resultante de várias guerras e disputas políticas, até a generalização dos novos Estados-nação que conhecemos hoje em dia.
Essas são considerações importantes para ajudar a entender como essas marcas históricas se constituem elementos substantivos na construção de uma teoria do Estado capitalista dependente, que leve em conta a possibilidade de sua derivação lógica a partir das relações do capital, uma vez que estas já estejam organizadas em nível mundial.
Sempre que estudamos a formação do Estado moderno capitalista, nos remetemos às experiências clássicas da Europa (o processo original inglês e, depois, a França e a Alemanha e, mais à frente, Rússia e Itália), dos Estados Unidos e do Japão, cada qual com suas particularidades. O processo inglês foi o mais adiantado no tempo, por reunir condições prévias, que somente se consolidariam mais tarde em outras regiões do mundo: a) Estado nacional unificado; b) burguesia forte, econômica e politicamente; c) disponibilidade de força de trabalho, após o cercamento dos campos; d) riqueza centralizada na forma de dinheiro; e) integração dos mercados e posterior controle sobre a produção de meios de consumo direto e de meios de produção. Todo esse longo processo histórico é bastante conhecido: a constituição de um Estado absolutista, extremamente autoritário, voltado para preparar as condições para a acumulação primitiva de capital e, depois, as revoluções burguesas, que relativizou o poder absoluto da realeza em favor da formação do tal Estado Democrático de Direito, o qual seria a base que garantiria as condições jurídicas, políticas, ideológicas e, especialmente, policial/militares, para o processo de industrialização.
Processo bastante distinto passou a ocorrer na formação dos novos Estados nacionais no período de transição do Antigo Sistema Colonial para a etapa imperialista. O caráter inorgânico, que foi marcando a constituição do Estado capitalista nas ex-colônias formalmente emancipadas, se deve à necessidade de se encontrar soluções para os entraves colocados a cada momento para a acumulação de capital nas antigas metrópoles. Em especial, deve ser considerada a exigência de redução dos gaps tecnológicos, que provocavam grandes diferenciais de produtividade do trabalho, quando comparadas a organização da produção nas potências fabricantes de máquinas, equipamentos e meios de consumo de maior qualidade (em plena generalização das relações de assalariamento) com aquela mantida nas antigas colônias especializadas na produção de insumos industriais básicos, onde vigorava a produção capitalista de relações não capitalistas de produção, como nos ensina José de Souza Martins, em “O cativeiro da terra”.
Eis, portanto, o grande dilema internacional daquele momento de transição. Como industrializar a produção de alimentos e insumos nas ex-colônias, tendo em vista a necessidade de redução de custos de produção, garantindo as relações de subordinação política, econômica e militar das nações recém-emancipadas aos interesses do grande capital sediado nas antigas metrópoles?
Do ponto de vista econômico, percebe-se que a solução foi garantir, no processo inorgânico de transferência de investimentos externos, de tecnologia e de constituição das linhas de financiamento voltadas para converter o trabalho compulsório das lavouras e das minas tradicionais em trabalho industrial nas ex-colônias, a manutenção do controle oligopólico da produção, da tecnologia e do crédito.
Agora, do ponto de vista eminentemente político, a solução ocorreu na medida em que os novos Estados nacionais foram surgindo, também inorganicamente, prescindindo-se de um processo de revolução burguesa clássica, pelo simples fato das condições infraestruturais já estarem constituídas a partir da organização do capital em nível mundial.
Segundo essa interpretação, portanto, não seria nem necessário e muito menos desejável a formação de uma burguesia forte econômica e politicamente nas ex-colônias. O Estado forjado inorganicamente foi organizado de forma a garantir, por meio de regimes políticos de caráter autoritário, de um lado, a exploração da força de trabalho num regime muito mais violento que aquele expresso no capitalismo avançado, como condição para atrair investimentos externos, sob relações internacionais de subordinação, como nos ensina Ruy Mauro Marini, em “A dialética da dependência”.
De outro lado, o Estado subordinado também deve garantir a apropriação interna de excedentes sobrantes (pois, a maior parte da riqueza produzida nas ex-colônias continuaria seguindo para as grandes potências) por meio de instrumentos, ainda muito semelhantes àqueles que predominaram no período clássico da acumulação primitiva da etapa de transição do feudalismo ao capitalismo.
Espero que essas reflexões possam contribuir para entendermos o atual estágio de emergência, no nível da superestrutura jurídica, política e ideológica, das novas relações capital/trabalho que vigorarão a partir deste momento, em que se aprofunda esta que, até agora, se configura como a grande depressão do Século XXI. O grau que experimentaremos no Brasil essa onda avassaladora, que ameaça elevar ainda mais o nível de desumanização no capitalismo mundial, tem muito a ver com o caráter das elites subalternas que assumiram secularmente a tarefa de desenvolver a inserção dessa região continental às relações do capital mundializado.
*Economista e doutor em Política Social.
Não há comentários postados até o momento. Seja o primeiro!